Telefonou. Hoje vem. Mas só à noite. Quando aparece é sempre à noite. Tarde, da noite. Suponho que seja quando tem mais tempo livre, está mais desafogado, mais descontraído e esquecido dos problemas do dia-a-dia... mais tempo para mim. É um homem muito ocupado. Eu percebo isso perfeitamente. Aliás, sei que um dia estas visitas nocturnas vão acabar e ele vai arranjar tempo para estar comigo durante o dia. Como duas pessoas normais. Como um casal... havemos de acordar os dois, de manhãzinha, os dois na mesma cama, na mesma casa, ele a dar-me um beijo na testa e a dizer-me bom dia, eu a preparar-lhe o pequeno-almoço. Talvez de robe, ele a cheirar a after-shave e a ajeitar a gravata, eu a compor-lhe o colarinho torcido... Tenho que me despachar, ele hoje vem: vou rapar as pernas e pintar as unhas... ele gosta de passar as mãos pelas minhas pernas: diz que tenho pernas de gazela, compridas, esguias e firmes. Será que a mulher dele também tem pernas compridas? Já lhe perguntei, não directamente claro, mas ele não me respondeu... só olhou para mim... lembro-me que se afogou no meio das minhas pernas e eu acabei por me esquecer de lho voltar a perguntar. Ele não gosta que eu lhe faça perguntas sobre a mulher. A que está casada com ele. A outra. Que engraçado! Eu é que devería ser a outra mas a mulher é que é a outra! Para mim, claro... Não acredito que ele lhe faça as coisas que me faz a mim, assim, a beijar e... será que ele lhe pede as coisas que me pede a mim? claro que não, ela deve ser feia, gorda, com pernas curtas e peludas! Sabe lá ela do que ele gosta?! Alguma vez ela soube o que é tê-lo como eu? E se ele ficasse toda a noite comigo, uma só vez que fosse, tenho a certeza que nunca mais querería voltar para casa! Eu havería de lhe fazer os petiscos que ele gosta, à luz das velas, todos os dias a jantarmos à luz das velas ele a servir-me uma taça de champagne, um brinde à eternidade pelo nosso amor, ele a pegar-me ao colo, atirar-me sobre a nossa cama e felizes como nunca amar-nos -íamos até de manhã, cansados, mas muito, muito felizes!
Quando me ligou avisou-me que não podería ficar mais de duas horas. Mas vem. À noitinha, mas vem. Duas horas, tão pouco e eu com tanto para lhe dar... Já sei que quando saír me vou sentir horrível, detestar-me, chorar e prometer a mim própria que foi a última vez, que tem que tomar uma decisão. Estou cansada de ser a outra. Mas tenho medo que ele não apareça mais... que vá para a outra, a mulher.
Deve estar quase a chegar. Já é noite escura. Já ninguém o vê. E as próximas duas horas são só minhas, de mais ninguém. Nem dele.