Poemas : 

Retrato

 
Correm-me as lágrimas
Como um rio
A lavar a saudade.
Cristalino é o sol lá fora
E nada vejo!
Queria escrever nos montes
Com todas as certezas,
Abraçar as nuvens coladas aos teus olhos
E deixar-te ir para onde tu quisesses em liberdade.

Mas agora, pouco tenho para te dar
Só um grito
Cego,
Que apalpei agora mesmo com todas as letras
Seguindo todas as linhas retas
Que não soube pronunciar.

Peço desculpa
Por levar estes meus dedos
Magoados
e leigos a escrever
À tua boca

E nessa mesma
Erguer uma onda de sal.

Igual aquela mesma que me deixaste um dia
Tão Infernal.

 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 26/02/2022 05:16  Atualizado: 26/02/2022 05:19
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: Retrato
De tempos a tempo surgem enormidades na página desta autora. A regularidade pode ser trabalhada, mas não é assim tão irregular, na minha opinião.

Quando começamos na leitura o sujeito poético começa por nos ludibriar logo no título.

Antigamente, um retrato era uma fotografia de busto. Tiravam-nos retratos para a caderneta da escola.
Engraçado que “tirar” fotografias é uma acção de remoção.
Como tirar um dente. Mas dão-nos, pelo menos antes uma folha de papel fotográfico com a imagem. A auto-imagem ou a imagem doutrém.
De quem será este retrato, então?

Ler.
A primeira imagem (será um retrato?) vem no primeiro verso que vai percorrendo os restantes dois:
“Correm-me as lágrimas\Como um rio\A lavar a saudade...”
A corrida é um movimento rápido, mas as “...lágrimas...” não caem em câmara lenta.
O rio é uma bela personificação. Como o Homem, ele nasce, tem um caminho e morre.
A comparação como figura de estilo está bem feita. Geralmente uso pouco, tento transformá-las em metáforas.
O choro é uma forma artesanal de lidar com a dor, neste caso a da “saudade” ou da falta.
Apesar de ser um pouco cliché, não deixa de ter uma forte dose poética.

Os dois versos seguintes têm mais um enigma.
Porque parece que a codificação da linguagem e do mote, é um dado adquirido neste poema, “...Cristalino é o sol lá fora\E nada vejo!...”. A cegueira, neste caso, não se encontra no exterior do sujeito poético. O cristal é um vidro de enorme qualidade e pureza. Há transparência, mas uma opacidade também.
Os últimos 4 versos da primeira estrofe são duma lógica absurda.
Partem de uma incapacidade do sujeito poético, assumida. Assume que é incapaz de dar liberdade.
E há um certo remorso perceptível.

Na segunda estrofe o “...pouco tenho para te dar...” coloca uma segunda personagem em cena pela segunda vez.
Há uma ligação à primeira estrofe muito bem conseguida com “um grito\Cego...” que confirma a incapacidade de ver o sol de cima. Interessante a quebra de verso em Cego e ser apenas uma palavra que está em maiúscula. Nãosei se foi coincidência mas se fiquei na dúvida foi de génio.

Na terceira estrofe o retrato muda de figura.
Retrato vem do verbo retratar, que pode dar em retratação, ou pedido de desculpas.
Perdemos então todas as imagens, todas as selfies, pois não é disso (de egoísmo) que fala o sujeito poético.

“...Peço desculpa
Por levar estes meus dedos
Magoados
e leigos a escrever
À tua boca...”

Belo, não é. Que dizer?
Esta estrofe seria um belíssimo poema.

Devo dizer que não gostei dos dois últimos dísticos.
Não acrescentam muito ao poema e tornam-no um pouco lamechas.

As desculpas evitam-se, mas então, o que faremos com o divino perdão?

Favoritei, como de costume