Não posso dizer que sou um modelo de felicidade, tenho os meus senãos, nem me posso gabar que seja um conhecedor de vinhos que distingue uma casta de 1972 com uma de 1981, sei o meu número de bilhete de identidade de cabeça e só por isso já me acho um génio no que toca a assimilação.
Não se preocupe que não é de minha intenção expôr a minha vida ao milimetro até porque eu tenho a chaleira no lume e, se acaso me perder neste trote de palavras que eu espero bem que comece a ganhar corpo depois do décimo verso, a água evaporar-se-á antes que eu tome o chá com folhas de cidreira que eu próprio colhi de um muro que eu, por ignorância ou desatenção, julgo ser de todos e não é de ninguém.
Posso dizer que o sol é um motivo aparente para se falar dele, mas sei que tudo foi dito. Se eu disser que ele está belo e que a cidade está na direcção dos seus raios de luz, é um direito meu.
Eu entendo as pancadas do sino da igreja, só não compreendo os que entendem as pancadas do sino da igreja. No dia em que fui chamado para a guerra, tocaram os sinos, no dia em que subi ao altar para prometer ao Senhor que sim, tocaram os sinos, na manhã em que acompanhei a minha avó morta ao cemitério, tocaram os sinos, na hora em que recebi os resultados positivos do raio x à coluna, tocaram os sinos, na manhã em que acordei fomento e a dispensa estava vazia, tocaram os sinos. Hoje quase não posso com os sinos, quando eles tocam fazem ressuscitar uma tristeza, um símbolo triste a arrastar-se pelas ruas.
Um aleijado espera uma caridade e vai apodrecendo entre o compasso da oração e a espera, mas no entanto ri-se, porque ele próprio inventou o seu absinto de felicidade. Esta passagem do aleijado pode não ter nada a ver com os sinos da igreja, só a fiz passar porque sim.
Não me perguntem o certo e o errado, não tenho horas de entrar em casa, já fui mandado parar pela polícia no momento em que tinha um filho ao colo e fui incapaz de explicar que era eu que o estava a amamentar - fui génio na arte do silêncio.
Não sei se já reparou mas eu tendo a evitar um fim pessoal, gasto caracteres tal um principiante com ataques de incompreensão, adio uma decisão para uma hora de sonho mais profundo e resolvo o momento, como o alcoólico faz na sua íntima mistura de licores.
A natureza dispõe-se e nós, quanto mais olhámos mais desgastamos o olhar. De que falo afinal se nada disse mais que um conjunto de quase-verdades, juntar o pó das prateleiras para obter resultados não me parece que daí resulte uma profecia secreta que descomplicará os enigmas por nós inventados. Devo estar louco, ou apaixonado, talvez, ou será que um Fernando ou Pessoa qualquer me conduz esta mão que escreve esta dura-mansa Paixão de apostar num conceito global de felicidade?
Ontem estive à mesa com meia dúzia, falou-se de caça, o que acho ridículo, discutiu-se com sintomas de velhice, lembrou-se velhos tempos junto ao fontanário, um: manchou a camisa de vinho, outro: tinha os colarinhos para cima, ri-mo-nos, alguns sem puderem exibir toda a escala dos dentes. Ria-mo-nos. Fora da taberna, o silêncio ajustava o seu corpo para caber nas bocas do mundo, nem agitações de árvores nem barulhos esquisitos de sapos, todo o céu sem pio.
Ao longe aproximou-se uns faróis feitos de lume de incêndio, tenho a paixão de um dia me pôr à frente mas não será agora, porque um dia ouvi minha mãe dizer que quando me teve, tocaram os sinos, por isso é que eu acho que eu e os sinos formamos um casal. Quando eles tocam, algo me diz que um buraco do chão será única escapatória de alguém, de outro alguém e mais outro e depois outro, até chegar a minha vez, para ir não sei onde.
A vida é uma surpresa, dizem, e eu espero não ser surpreendido, já tenho a mala feita e, odeio descompromissos. Eu até entendo a vida, só não compreendo é os que entendem a vida.