UMA DE JOÃO-SEM-BRAÇO

Há um livro de que gosto muito chamado AS CIDADES INVISÍVEIS, de Ítalo Calvino. N’ele, o autor apresenta uma cidade subterrânea, onde os mortos da cidade superior (a real) são enterrados com as roupas que escolherem, ou seja, com a classe social e a profissão que quiserem. O autor informa que há uma espécie de confraria de religiosos que habita tanto a cidade superior quanto a inferior. São eles que vestem os falecidos e os colocam em poses que simulam uma segunda existência, em classes sociais e profissões diversas da primeira existência (a real).

Sem causar muita surpresa, Calvino descreve essa cidade inferior de cadáveres como a fantasia do que eram quando vivos, ou seja, o rei sonha em ser um pastor de ovelhas (como nas poesias pastorais da Renascença)... A senhora religiosa sonha em ser uma messalina; o escravo sonha seu um príncipe ou o eunuco sonha ser um pai de família comum. Resumindo: Ninguém quem sonha ser. A fantasia é o lugar em podemos nos outrar, como diria Fernando Pessoa. Ser outro sem deixar de ser quem se de facto é a grande invenção do ser humano: actuar, encenar, brincar de ser, fingir, ser de brincadeira, inventar um novo mundo inteiro no qual se transita como personagem, não como pessoa. Vou te mandar a real,

Sou de Minas. Jamais estive no Rio de Janeiro em minha vida. Tenho esposa, filhas e carreira e moro n’uma casa até boa. Mas, na minha fantasia, eu queria ser o merda que descrevi no poema, ou seja, uma pessoa preocupada em viver, não em ter ou ser. Uma pessoa livre que se dedica unicamente à poesia. Dar uma de joão-sem-braço, como se sabe é dar um golpe. É fingir ser um aleijado para compadecer o outro e receber d’ele uma esmola. No fundo, é isso que faço: visto-me de poeta para receber um aplauso aqui e outro ali.

É isso. Agradeço a leitura atenta!