As construções, as fundações, as paredes verticais
O edifício de comunhão com a realidade
É fruto do suor ácido do trabalho do meu corpo
Pertence-me e ninguém tem o direito de o profanar.
Depois de mais um domingo investido na diversão dos tolos
No lazer dos homens rasos, plebeus malditos
Rasgo, quase sem ler, com tendências suicidas o jornal tendencioso.
Levanto-me da velha poltrona de pele
Com a rapidez inusitada de quem cometeu um crime hediondo
Com a sensação de culpa premente a latejar nas veias
Como as contrações de um parto iminente
Que, sem problemas maiores de consciência, decido abortar
Chego-me ao aparador, já livre de qualquer culpa, contigo no pensamento
Encosto-me e estagno, gélido, imóvel
Como se a minha imagem mortiça, o aparador antigo e o bege das paredes
Compusessem uma fotografia sépia comida pelos anos
Aprecio, então, a moldura imponente no outro canto do móvel
Onde tu emanas vida e contagias a paisagem nela capturada
Despertando em mim, uma sensação de urgência profunda
Uma urgência em tons monocromáticos de azul
Uma urgência...
Uma estranha necessidade que conheço tão bem
Finjo que faço, finjo o embaraço, quase sem pensar
E só os teus olhos me conhecem tão bem
Só eles me conduzem e levam sereno
Ao azul das tuas lagoas profundas
E, são elas, na sua beleza, a eterna razão da minha urgência.
Reajo, com o alento do teu alento lembrado, e em dois passos chego à janela
Afasto a cortina e revela-se, por instantes, a nua invisibilidade da vida
O Quim pasteleiro, subindo apressado a meia dúzia de degraus
Que dão entrada para a travessa da minha casa
Distraído pelo atraso que advém das coisas básicas da vida
Vem subindo os degraus na ilusão interna de os subir
Já atrasado para o turno de fazer bolos na pastelaria do fundo da rua
É a vida que se adianta, sem lhe mostrar o que a realidade reserva
Nem a do pai dele, o António barbeiro, nem a do Modesto do talho
Nem a do Xico da retrosaria, nem a das peixeiras da praça
A certeza real de ser a argamassa que une os degraus imundos da sociedade
Permanecendo prensada e sem meio nem razão para os subir
A dura realidade de não ser e ser apenas suor caído na massa por amassar, no turno da noite a fazer bolos na pastelaria do fundo da rua
Confiscada pelos diabos que manipulam esta tristeza de ser
E sobreviver de subsídios a favor da ganância daqueles que podem
E emprestam ao mundo um jogo de sombras
Discursos cursados de eleitos predestinados
Os ascendidos, os favorecidos, os elevados
Aos ombros dos amigos, amigos dos favores
À sua imposição
Vergar, vergar, vergar
Sem prestar contas à luz
Sem ouvir licença à voz
Tudo cobrado em lágrimas
Assola-me, momentaneamente, a descrença colada ao impossível
Uma fragrância de mar que condensa sentimentos
Desconcertantes aromas libertados entre palavras oceânicas
Antes de mergulharem na rebentação de um mundo de sal.
Toco a pele sensível de uma lágrima, moldada na urgência da dor
Espada de ferro, forjada no fogo apocalíptico do meu erro
Que trespassa a malha fina do meu tormento
Do meu iminente arrependimento
O tudo, que eu devia poder
O tudo que eu devia saber
O tudo que eu, devia fazer
O tudo…
Eu devia poder tudo
E saber tudo
E fazer tudo
Porque eu, tenho tudo
Porque, eu sou tudo
E de tudo
Tudo
E o céu tão perto
Talento livre e espontâneo derramado em folha branca, obra feita
Voz natural acolhedendo ecos no anfiteatro da alma, asilo de mim
Caminho vereda mediterrânea nos passos do meu quintal
Oh! Como sofrem as pedras
Oh! Como sinto o silêncio
Espirituosa a vontade do vento
Quando desarranja o cabelo das moças a caminho da igreja
Perfeita a inquietação da lua
Quando se mostra ao mundo plena de feitiço
Quando desperta o mestre vampiro, noturna solidão
No seu desconforto sanguinário
Na sua sede incontrolável
Movendo-se pelos meandros inconscientes
Onde as memórias de um futuro feliz
São punhados de terra húmida cobertos pela névoa da madrugada
É nesta urgência, poderosa ânsia, que controlo o pensamento
É onde tudo se cumpre e onde a vida real acontece
Como um infalível destino
Como uma infinita treva
Enquanto as eras do silêncio perduram e reinam no veludo do universo sentido.
Agora que amanhece, o sol rompe a linha do horizonte
Iluminando os ecos perdidos da minha mente
Ditando o fim desta noite.
Marioneta do dever, um novo dia
Liberdade
Liberdade
Liberdade
Passar no quiosque
Comprar o jornal
Mais tarde, arroz com atum para o almoço.
Viver é sair para a rua de manhã, aprender a amar e à noite voltar para casa.