A porta tinha várias trancas
(gosto mais de trancas do que de trincos
menos quando trinco
a tranca)
uma feita de corrente e encaixe
outra era pura fechadura com chave
a terceira ferrolho e respectivo cadeado
duas maldições
meio mau-olhado.
Do lado da rua tinha sol, vento e chuva
ocasional granizo
nunca neve
muita gente, formigas, nós dos dedos
abelhas sem colmeia, aves de arribação
árvores de folha perene
filhos e crias
os meses do ano
dias inteiros...
Do outro lado, paredes
cantos e esquinas
divisões, azulejos, caixas e caixotes
camas de solteiro, espelhos e legumes
tomadas
despesas e despensas para mercearias
pares de pés cansados e rotineiros
contas de cabeça e para pagar, planos adiados
pequenos luxos...
A porta era de carvalho e vidro
transparente como o ar fresco
acastanhado como o solo, a lama, o estrume...
Dividia o dentro-e-fora
somava o sair ao entrar
por um número indeterminado
de passos e passageiros.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.