Chamava-lhe simplesmente “a velha”. Não exactamente pelo sentido depreciativo do termo, mas porque na verdade, era velha – idosa, politicamente falando.
Nada a unia a ele a não ser que a velha era nem mais nem menos a sua senhoria. A pessoa a quem, aquando da sua vinda para o Politécnico da Guarda, lhe alugara um quarto que dividia democraticamente com outro estudante. Um quarto que em nada lhe lembrava o seu deixado no Alentejo, meticulosamente branco, sempre a cheirar a cera de abelha, todos os dias arejado, todos os dias alindado. As rendas brancas, os tapetes de Arraiolos feitos propositadamente para aquele e não para outro quarto, as estantes geometricamente dispostas e rigorosamente limpas…
Filho único e órfão de pai desde os cinco anos de idade, Renato fora sempre alvo de todos os desvelos e cuidados extremados, quer da mãe, quer das tias e tios e, claro dos avós.
Cultivara o gosto da arrumação, do aprumo, da ordem. Tornara-se senão obsessivo pelo menos fóbico em relação a cuidados de higiene. Ou ambas as coisas!
Na hora da escolha do curso, parecera-lhe evidente que teria de cursar medicina. Sem margem para dúvidas. Não porque as pessoas em si, o interessassem por ai além, mas porque, se bem cuidadas do ponto de vista médico sanitário, seriam, em ultima instância, um perigo menor para a sua saúde e, claro para o seu bem-estar.
Todavia a entrada em medicina estava-lhe vedada. Não era um aluno brilhante, apenas um bom aluno.
Em segunda escolha, e porque pela “boca morre o peixe”, decidiu-se por Higiene Oral. Seria higienista. Teria a seu cuidado a porta através da qual todas as porcarias mundanas se alojam no ser humano. Ou melhor, uma das portas. E das mais vulneráveis.
A casa era exígua, as paredes não viam tinta há séculos. As mobílias eram mais velhas que a sua dona, e, para além de tudo estavam para além de ressequidas pelo tempo e pelo pó. Carentes de óleo de cedro como jamais se vira. Pelo menos como ele jamais vira… A cozinha por certo nunca beneficiara de uma limpeza de raiz…
Hesitou antes de alugar o quarto, pensou duas vezes e concluiu que, apesar de tudo, era económico e, com os cobres restantes podia muito bem fazer umas noitadas com as caloiras. Sorriu de si para si, numa boca imaculadamente limpa, do esmalte dentário à cavidade bocal propriamente dita, mercê de gargarejos e desinfectantes adequados. Não, não fumava …
Postas as coisas deste modo restava-lhe então cuidar o melhor possível do espaço que lhe estava destinado – o do quarto e a serventia de cozinha, loiças inclusas. Assim o fez. Lavou e arejou, separou cobertores que colocou na lavandaria e que usaria logo que o tempo esfriasse mais um pouco e, claro, demarcou meticulosamente a loiça a que doravante chamaria sua. Procurou que fosse a mais velha, a mais feia (assim nenhum dos outros ocupantes da casa cairia em tentação de a usar). Comprou anti-séptico adequado e emergiu todos pratos e copo, chávena, talher. Agora sim, poderia usar sem mais. Sorria satisfeito: “Boa Renato, tá fixe…”
As aulas começaram, Renato estava pouco tempo em casa, dividido entre namoriscar caloiras e cabular para os exames. Estudar de vez em quando, como convinha.
Como dizia, em casa o tempo era mínimo, até porque aquela não era a “sua casa”…
Um dia Renato sentiu-se indisposto e decidiu voltar mais cedo que o costume. A casa, mau grado estar um dia húmido e frio de Inverno, não tinha a lareira acesa. Virada a sul beneficiava contudo do sol da tarde e, para espanto seu, viu a janela do seu quarto aberto. Aquela e as duas que lhe estavam próximas. D. “Velha” estava a fazer limpezas … Facto inédito e inusitado. Azar de vida, logo naquele dia em que queria sossego e uma cama para tombar a cabeça. E um colo, de preferência …
Meteu a chave à porta, não sem antes bater. Não obteve resposta. Entrou, dirigiu-se à cozinha, colocou a chaleira para fazer um chá (daqueles que trouxera do seu Alentejo), procurou a sua chávena de estimação (a tal, a mais usada, a que destinara a si mesmo), procurou de novo e nada …
Decidiu-se por usar um copo de vidro grosso, em que colocou uma colher, não fosse o mesmo rachar com o chá, encheu-o, adoçou-o com o mel, igualmente do seu Alentejo e predispôs-se a ir e a levá-lo consigo para o quarto.
Assim o fez. Fechou a janela, deitou-se e esperou que o chá arrefecesse para que o pudesse beber. Cerrou os olhos, desejou a mãe por perto … Um vómito incontrolável subia-se e descia-lhe da boca ao estômago e vice-versa….
Nos fundos da casa a “velha” cantarolava qualquer coisa de imperceptível.
Um novo vómito e uma corrida, uma mão na barriga e outra a segurar a boca, para a casa de banho (única na casa) …
De cabeça dentro da pia amaldiçoava a noitada e as “bejecas”… Porca de vida!!! Branco, mais branco que as paredes que o rodeavam levantou-se por fim. Lavou a cara, passou a mão molhada no cabelo e, por fim abriu os olhos … encarou a luz tremeluzente de 50 Watts projectada no espelho…
Sombras formigavam por os fungos dos azulejos. As formas difusas da casa de banho tomavam agora contornos fantasmagóricos. Julgou-se morto e estava vivo… agarrou-se ao lavatório apoiado contra a parede e, de repente julgou-se com visões, possuído pelos demónios: na sua caneca, na sua caneca e não noutra, na sua caneca, naquela que procurara para o seu chá… na sua caneca, de molho, duas fileiras de dentes, desconchavados, velhos e amarelados, riam-se dele descaradamente…
Esfregou os olhos, encheu as mãos de água e lavou-os repetidamente. Não podia ser, porra, não podia ser…
Era! Aquela era a caneca, exactamente aquela, onde “a Velha” colocava a dentadura de molho …
Um vómito saiu-lhe disparado contra a imagem projectada no espelho …
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