IN DUBIO PRO VICTIMA (artigo de opinião)
Enquanto escrevo o país arde contra a absolvição d'um homem acusado de estupro. Por falta de provas que corroborassem a acusação da possível vítima, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, decidiu que não houve crime. Relação sexual, todavia, houve. A dificuldade em se provar o consentimento ou não da mulher gerou, segundo o que foi reportado na decisão, a dúvida razoável que livrou o réu. Canalizando a revolta dos vencidos na demanda judicial, o veículo de imprensa The Intercept Brasil divulgou as cenas chocantes do interrogatório a que a acusadora fora submetida pelo advogado de defesa do réu e a conclusão -- desnorteante, mas plausível diante das imagens -- de que vencera n'esse julgamento a tese d'um estupro culposo.
Não é incomum a imprensa lançar mão de expressões exageradas ou mesmo sensacionalistas com o objetivo de atrair a atenção da opinião pública. Na verdade, a ideia de estabelecer paralelo entre o homicídio culposo (aquele no qual o homicida não teve provada a intencionalidade da morte de outrem, embora sua responsabilidade sim) e uma modalidade de estupro na qual a consensualidade do parceiro no ato sexual possa ser ignorada é algo inusitado... O estupro culposo, alinhavado com a ideia de merecimento do ocorrido pela vítima em função de sua roupa, reputação e mesmo das circunstâncias, permitiu ao acusado André de Camargo Aranha sair pela porta da frente do Fórum ao passo que sua acusadora, a jovem Mariana Ferrer, fosse desqualificada como alpinista social basicamente por ser pobre e bonita. A culpa, entenderam o juiz e o promotor, foi do Universo... Ou melhor, da vítima que interpretou uma relação sexual não consentida (ela estaria embriagada ou narcotizada) como estupro.
Aliás, por via de regra em caso de estupro, a culpa é sempre da vítima até que se prove o contrário. Isso não é bom. Não é bom para nós enquanto sociedade onde, estatisticamente, acontece um estupro a cada oito minutos, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2020. Mais do que decidir se houve justiça ou não no caso de Mariana Ferrer, a preocupação do Judiciário brasileiro deveria ser, também, civilizatória. Isto é, há estupros demais no Brasil e uma das razões são as próprias peculiaridades do crime: Na falta de provas e testemunhos contundentes, restam apenas os depoimentos de acusado e acusador. É a palavra de um contra a do outro, de modo que sempre haverá dúvidas sobre a verdade dos factos. E, como sabemos, in dubio pro reu... O Judiciário, há séculos, prefere se omitir a errar. O que pode até ser razoável na maioria das vezes se tornou uma licença para estuprar impunemente, haja vista sempre haver dúvida razoável n'um crime que se pode se confundir com intimidade. Com efeito, o que diferencia o estupro do acto sexual comum é a compreensão que os envolvidos têm do que aconteceu. Isso, por si só, deveria fazer o Judiciário mudar o modo como aprecia esse tipo de acusação e, sobretudo, como decide sobre a culpa.
É interessante que a sociedade mude quando identifique situações que promovem a criminalidade e a desigualdade. Supor dúvida razoável em casos de estupro tem, historicamente, beneficiado estupradores e silenciado vítimas. Não há solução à vista com tal sistema. Em casos de acusação de estupro, o ônus da prova deveria ser do acusado, jamais da acusação que, em tese, é vítima de um crime gravíssimo. Em termos civilizatórios, ao menos, teríamos pessoas mais preocupadas em ter o consentimento dos parceiros do que interpretando sinais de consentimento. Urge àqueles que se pretendem bem intencionados aprenderem a respeitar a vulnerabilidade de quem está diante de si, seja pela juventude; seja pela condição física ou mental. Na dúvida, sejamos pela (possível) vítima.
Betim - 04 11 2020
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.