SEM RAÇA DEFINIDA
Malu era, provavelmente, o ser vivo mais saudável que já existiu. Desde que entrou em nossas vidas, trazida por um carpinteiro que trabalhava nas obras de nossa casa, ela jamais adoeceu. Isso já faz uns oito anos. A casa ficou pronta, os operários foram embora e Malu ficou. Em tempo, tratava-se d’uma cadela vira-latas castrada depois de três ou quatro prenhezes. Tinha pelagem branca malhada de castanho e preto, olhos claros e orelhas bem erectas de loba.
Entrava e saia livremente, jamais se demorando na rua mais que um dia inteiro, de modo que era conhecida de todos na vizinhança. De manhã cedo, passava na padaria e ganhava um pão fresco da mão do padeiro, além de correr na pista de caminhada da avenida, sozinha, junto com os outros cachorros encoleirados. Malu, aliás, usava coleira, mas apenas. Jamais passeava amarrada junto de qualquer um de nós. Malu não era uma cadela doméstica, sim mais uma moradora de nossa casa, absolutamente independente de nós. Jamais precisou ir ao veterinário, excepto quando da castração. Não tomara vacinas e tampouco necessitava de medicações. Vez em quando passávamos remédio para pulgas e tentávamos lhe dar banho. Invariavelmente, porém, tão logo se livrava de nós, molhada ainda, Malu rolava na poeira...
Muito dócil, Malu só latia para andarilhos que mexiam no nosso lixo. Jamais tivemos receio de receber visitas. Nem cheirar os estranhos vinha. Ela reinava, livre e solta, em nosso jardim e na rua defronte a nossa casa. Pouco se importava com conosco, a não ser quando deitava de bruços pedindo carinho na barriga. Fazia cara de pedinte e se refestelava com carinhos do pé da gente... Acho que ela nos manipulava: Mantínhamos o cocho de ração e a vasilha d’água cheios e a acarinhávamos, mas praticamente não a víamos.
Todavia, quando veio a pandemia da Covid19 (e o consequente isolamento social), Malu teve de ficar acorrentada... Havia muita discussão se cachorros poderiam ou não pegar a doença ou mesmo serem vector para transmitir o vírus a humanos. Na dúvida, nada de passeios. Como bastava abrir o portão para ela azular na rua, não tinha como ficar solta mesmo no jardim. Visivelmente entediada, restava a Malu ficar nos observando. Penso que ela descobriu muito sobre nós, tão entediados quanto ela. O confinamento tem sido um período muito difícil. Acredito que Malu percebeu que algo estava diferente. Ela já não me acompanhava até o ponto de ônibus na Avenida ou nossas filhas até a escola do bairro (minha caçula tinha muita vergonha d’ela...). O padeiro sentiu sua falta e me abordou n’uma manhã para saber d’ela. Contei que estava acorrentada, por isso não vinha mais. Ele sorriu e não disse nada. Era interessante que Malu sempre inspirasse um sorriso; um comentário jocoso. Todos se admiravam d’ela.
A pandemia se prolongou e a situação de Malu se agravava. Ela perdia peso e vitalidade a olhos vistos, muito embora tivesse ração e água ao alcance. Tínhamos de fazer alguma coisa, mas o quê? Após alguma hesitação, mandamos Malu para vigiar o canteiro de obras d’um parente, n’um bairro d’outro lado da cidade. Pusemos Malu no carro e a levamos. Tivemos-de prendê-la para irmos embora. Coração pesado, vivíamos pedindo notícias d’ela. Tudo normal, diziam. Lá no bairro, porém, todos sentiam que faltava algo no quotidiano. As carreiras de Malu rua afora pareciam estar firmes na memória de todos. Todos estávamos meio órfãos sem Malu.
De repente, no meio noite, ouvimos latidos: Era Malu! Ela andara de volta mais de vinte quilômetros e voltara para casa. Ela, que já me acompanhara ao centro da cidade inúmeras vezes sem se perder, encontrara o caminho de volta sozinha. Reunimo-nos ao seu redor, assombrados, enquanto ela bebia sua água em sua vasilha.
Betim – 16 09 2020
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.