Podia-se dizer que todos os seus dias eram iguais: levantava à mesma hora ao som de um despertador tão eficiente quanto incômodo que ficava sobre o criado mudo. Parecia uma serpente - não em forma, mas em atitude - que estava pronta para o bote quando a melhor hora de sono se aproximava. Picado pela campainha estridente, abria os olhos e sentava na cama.
Permanecia sentado longos instantes antes de se levantar, pois lera em algum lugar que a maioria dos acidentes no quarto se dava justamente ao acordar. Diziam que a ocorrência de vertigens era bastante usual para aqueles que se levantavam rapidamente e dai para o acidente não haveria distância.
Depois desses minutos, vestia os chinelos e punha-se em pé olhando à sua volta e reconhecendo os traços de sua já conhecida mobília. Traçava mentalmente seu caminho até o banheiro, embora a mais crua verdade poderia afirmar que isso não seria necessário por todas as repetições cotidianas que ele fazia.
Mas ele acreditava que tudo deveria seguir um método, uma repetição de fases inalterada pelos anos a fio.
O sanitário, a pia, a escova de dentes e o pente a repor alguma ordem nos cabelos em desalinho, que estavam mais compridos que o normal.
Daí à cozinha para fazer o café da manhã. Café forte sem açúcar, bolachas, manteiga com sal. Eventualmente um pão passado na chapa com uma rica camada untada ou uma modesta fatia de algum tipo de bolo.
E assim a vida se desenrolava monotonamente repetida, na presumida segurança de seus métodos assinalados pelas regras que ele criou ao longo dos dias de sua vida.
Mas não hoje.
O despertador - aquele com duas campainhas e um martelete entre elas - mal iniciou seu tilintar e foi projetado na maior distância diagonal que o tamanho do quarto permitiu.
Ele ergueu os braços contra a cabeceira da cama para esticar-se que rangeu um rangido de surpresa com aquela inusitada posição. O móvel mal teria tempo de se recompor e num salto único, elegante como uma gazela, mas másculo como um touro, ele quedou-se em pé, ignorando os chinelos que receberam mesmo um olhar de desprezo antes do primeiro passo descalço.
Apontou o nariz ao horizonte e, sem cogitar a diagramação das coisas à sua volta, partiu em direção ao banheiro. Lá apenas borrifou poucas gotas de água com as mãos no rosto que mal sentiu o frio líquido; esfregou displicente, sem se observar, as pontas dos dedos no couro cabeludo, como se isso fosse o bastante para acreditar que fazia um penteado jovial.
Pensou num copo d'água como sendo o bastante para aquela manhã. Não às gorduras, aos farináceos e os megatons de cafeína absorvida (ou não) logo nos primeiros minutos de cada dia.
Sentiu-se feliz com a decisão e ao passar pela cômoda com o espelho antigo que pertencera à sua avó, não viu sua usual imagem refletir-se alí.
Antes de chegar na sala, ouviu vozes familiares, mas tão lamentosas que o fizeram recuar e assim pode ver o papel sobre a cômoda do espelho. Seu ímpeto já ia arrefecendo e murchou quando leu seu nome escrito à máquina no papel com um brasão cabeçalho e, logo abaixo, nem conseguiu terminar de soletrar C - e - r - t - i - d - ã - o d - e - Ó - b - i ...