Anúncio da Primavera
Era outro dia chegando
Estava a espera do brilho do sol
A madrugada fria partia, intacta
Minhas vizinhas já acordaram lindas
Eram azaléias, orquídeas, margaridas
Entre rosas, begônias e camélias
A terra ainda encharcada da noite úmida
Surgia meu poeta a observar, rotina
Procurava entre nós o amor perfeito,
Mas lá não estava, era ausente
Seus olhos ávidos tinha o doce do mel
Caminhava com passos sutis pelo jardim
Suas mãos delicadas tocavam as rosas
Com o cuidado precioso de um amor
Eu, entre tantas, aguardava seu olhar
Já estava virado ao sol, imponente
Meu amarelo transbordava alegria
Meu caule gigante já fora sua inspiração
Minhas sementes saciam as aves,
E o sol, nunca me deixou desfalecer
Meu poeta era terra, mar e luar
Tinha a fertilidade desse solo
Inundava nossas cores com sua poesia
E anoitecia trazendo a lua de companhia
E o sol o queimava pelas manhãs, embriagado
Minhas amigas o enfeitavam em suas poses
Éramos sua vaidade, seu divã
Recitava às margaridas seus sonetos
Seus versos nos regavam de vida
Matava nossa sede com suas rimas
A cada estrofe, citava uma de nós
Éramos sua revolução contra o canhão
Suas palavras escritas e famintas
Incendiavam sua espécie, seus irmãos de vida
Seus desejos viajavam nos horizontes
As orquídeas eram suas amantes
O doce aconchego materno, margaridas
As azaléias eram doses de ternura, irmãs
Seu juízo perdia-se nas begônias, atraentes
Murmurava às rosas, como confissões
Acariciava as camélias, ruborizado, súdito
Quase não me olhava ao alto
Mas meu caule era seu encosto, desabafo
Nesse dia, as nuvens chegaram sem aviso
Esconderam meu amigo sol, tímido
Traziam notícias, saudades talvez, um sinal
Nesse dia, fitou seu olhar em mim
Sacou do bolso um botão, não era de rosa
Era da camisa vermelha e puída
Vermelha sangue, puída de luta e poesia
Que vestia em dias de conquistas
Era um botão de camisa
Que guardava a última casa
Que encobria seu peito, seu coração
Cavou ali ao meu lado no solo
Um breve buraco, não era cova
Era cultivo, era lembrança
E recitou com voz embargada
Seu último verso naquele jardim
"Guardarei nesta terra, neste jardim
Às minhas senhoritas flores
Para meu fiel girassol, irmão
Guardião desse jardim, nosso éden
Um atalho de lembrança, amuleto
Pequeno mas valoroso
Desse botão, que num dia
grudou-lhe uma semente de girassol
Bem no perto do coração
Num dia de luta e sangue
Que aqui um dia plantei, esperança
E minha poesia se fez vida
Entre tantas sementes,
Versos semearam, e hoje
Tenho aqui um jardim,
Que floresce colorido, com aromas
Regado aos sonhos e devaneios
Cultivados pela vida ao sol
Sob o bailar das estrelas ao redor da lua
Nesse jardim que repousei pensamentos
Dessa metamorfose que somos,
Que se chama poesia! Vida!"
Disse isso e cutucou-me, traquino
Partiu acenando, deixando só um botão enterrado
Como se esperasse dele, nascer outro poeta
Um outro que nos amasse como nos amou
Seus pés caminhavam descalços
Levando consigo a terra deste solo
As cores e as fragâncias destas flores
A procura do amor perfeito, inexato!
Um orvalho, ainda que tardia
Despencou de mim, sobre o solo
Como um alento, um sopro, já saudade
Era uma lágrima, dessa notícia de botão
Despedida, inequívoca e pungente,
Desse poeta que um dia
Plantou a gente!
(M.Bessa)