Do amor ao próximo
Branca de Areia vivia junto de Omar Sal.
A Rua Mouca e Comprida albergava estes dois seres desavindos. A Agualva, essa rua.
A passagem do milénio foi suave aos dois. A meninice de escola primária já denotara brigas e arrufos.
Sobre o primeiro quinto de século tinham tido desencontros. Ódios de estimação.
Ele era seco que nem um carapau, aciganado, passava bem por romeno ou marroquino.
Médio, em tudo.
Na carteira. Na altura em que contava as histórias, sem razão, no café da Dona Lena. No carro de 99, sempre em bom estado e limpo.
Nas roupas garridas e adolescentes era mais extremo. Nos sorrisos, que se esquecia de sorrir.
Trabalhava como vigilante, cheio de insónias, num escritório de informática, ou programação, para os lados do Tagus Park.
Branca de Areia tinha aquela palidez.
Um pouco cheia, em quase nada.
Tinha tudo de mão beijada, não sabia como. Foi uma sina lida por bruxas velhas e requintadas do Bairro das Antiguidades, em Sabe Se Lá Donde. Andava sempre de roupa justa ao seu corpo farto e desejável.
O seu trabalho era em qualquer coisa, de mês a mês.
Nunca lhe faltava pão.
Os Ódios que cada um deste par criavam, chamavam-se Avaro e Gula.
Omar Sal era dono dum belo cão, raça branca, que chamara Avaro por puro deleite e ignomínia. O protolobo cinza respondera ao nome, com uma frieza canina. Sem ladrar, nem ganir.
Branca de Areia tinha uma gata persa que chamara de Gula, por achar que era uma virtude celestial. Roçava-se nas pernas com lascívia, e dava mais amor do que recebia.
Branca de Areia era ecologista, e andava a pé.
Opinava que até os componentes feitos na construção de bicicletas de bambu eram um ataque à natureza.
Optava por uma horta que cultivava na beira da rua, para colher o que comia. Cenouras, cebolas, alhos, ocasionalmente tomates de época. Apanhava agrião nas margens da Ribeira das Jardas.
Foi num dia de apanha, que se manifestou o penúltimo desaguisado com Omar Sal.
Na escola rira muito da sua cara, e do seu nome. Era, por ar, um pouco cruel a nossa Branca.
Ele nunca ligou muito às risas, Branca de Areia não era um nome por ali além.
Junto à margem mais longe da ponte-velha-sobre-a-noite-cerca-da-estação, estava o braçado mais gordo de agrião já visto, nessa apanha. Pisaram o gramado ex aequo.
Ambos se acharam no direito de o levar. Reclamaram-no, à bruta.
Ele não quis usar da muita força que tinha. Ela conhecia os seus hábitos alimentares.
Sem juiz, quiseram tratar do assunto como dois adultos, mas, sem abdicar.
À laia da pura argumentação filosófica, iniciaram uma reunião beira-ribeira, cheios de salamaleques.
Ela, com os peitos quase de fora, ajeitou o decote, por decoro.
Ele encrespou-se, o trapézio, junto com os ombros, avolumaram-se, em puro estado de concentração.
Ia ser feio.
Nesse mês de Outubro, a chuva tinha feito cara feia. Teimava em fugir.
Apesar de cinza, o céu nunca chegava ao chumbo. As nuvens, apesar de baixas, não se juntavam o bastante para se precipitarem. Por pouco.
O frio era a fingir, como um poema bom.
As margens da ribeira tinham o verde do costume, as águas límpidas plenas de batráquios e galinholas de água.
Pouco mais era que um fio, esta linha de água de nome pomposo.
Na idade média D. Domingos Jardo vivera ali. O conselheiro clerical mais leal e confiado do rei D. Dinis. Nessa altura esse fio que falo dividia Lisboa, concelho, de Sintra, outro.
Agora, dividia um braçado apetitoso de agrião.
Omar Sal apenas comia um tipo de verduras, o agrião.
Achava a alface insonsa, o tomate frutado, as couves (todas) indigestas, e não gostava de ter de as cozer. Era a cru.
Não se fiava nas lojas para um verde tão frágil.
Branca de Areia fazia dali um pesto à italiana, como poucos. Tinha comprado antes agrião na loja, mas não tinham o mesmo perfume. Desigual sabor.
Não fazia muitas vezes. Tinham um manancial diferente de alimentação vegetariana, mas quando fazia hambúrgueres de Grão de bico cozido a lenha, tinha de acompanhar com o pesto.
E era hoje. Agora.
Agora, era Omar sai-me da frente. Não és do meu caminho, quase lhes pões os pés meu asno, sem meu seres.
Agora era Branca de Areia não saio, nem que me pagues o teu peso em ouro, que não é assim tanto como dizes, digo-o eu.
Eu para cá e para lá e ninguém se entendeu.
Passou a rapariga e explicar a complexidade do pesto.
O azeite refinado dava-lhe corpo. Se viesse dos lagares do Norte, melhor.
Os pinhões ainda vinham com casca, e eram todos do mesmo pinheiro do quintal do seu bisavô. Tirada a pele, apenas os inteiros serviam.
O sumo de limão era de limoeiro biológico regado à chuva. Conhecia alguns, num pomar de limoeiros perto. Tinha de ser roubado.
Havia ainda o dente de alho, do tamanho exacto dum gomo de uma laranja média, da sua horta.
Picados à mão, os agriões eram lavados individualmente, e secos um a um.
As folhas tinham uma picagem com a ponta, os talos com a base da faca da cozinha que usava em tudo que envolvesse corte. Tinha experiência e alma de várias gerações de Areias. A picagem do agrião era o ponto alto da receita. Aprendera na televisão que certas facas de lâmina curva faziam o trabalho todo, com a habilidade certa. Era só deixar cair o gume com a pressão natural do peso da mão e os pedaços de cebola, ou neste caso, de agrião, materializavam-se.
Iam para a tigela, de barro preto cozido em forno velho, primeiro os pinhões. Eram esmagados com um almofariz de mármore Branco até pó, com algum azeite.
O dente de alho era picado. O objetivo, era fazer cubos com meio milímetro cúbico de volume.
Envolver com o almofariz ainda dava algum trabalho.
Os agriões, previamente picados, juntavam-se no fim, acrescentado o resto do azeite.
Mexer energicamente, é o que faz dum pesto um pesto, uma molhanga grossa e versátil.
Não era mulher para electromésticos e bimbos, ou lá o que era isso.
Disse, enquanto acabava a dissertação, e Omar começava a salivar.
Omar Sal segredou-lhe o que a deixou dividida.
Era o único vegetal que comia.
Para uma vegetariana, ou antes, uma vegan, essa foi a morte da própria razão.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.