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A má de mira

 
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Da eutanásia (continuação)


Não era a pessoa certa para ter arma, disse.
Naquela tarde de inverno, metida em conversas com os outros e consigo, no Café da Esquina, enfiara na decisão isto.
Num timbre agudo e feminino.

O calor dos trinta achegava-lhe-se a passos largos, corridos nos cem metros barreiras. Faltava-lhe acontecimentos, sonhos por sonhar, até as simplicidades da vida que via repetidas em outras e outros seus iguais.

Tinha uma inveja sumida, nessa tarde e nas manhãs de primavera.
Vivia em Carcavelos desde gaiata, os pais educaram-na bem. O sorriso sempre puro não lhes deixava ficar mal.
Entre empregos, Anastácia Boa-Morte era arquitecta há um lustro. Os cinco anos correram consigo e contra si, entre ateliers e a vontade de se lançar a solo.
O último trabalho que fizera foi na projecção do Centro Comercial Palmeiras. Fizera o décimo sétimo piso e as águas furtadas, num estilo pessoal e diferente do restante edifício.

Fizera muito bem a transição do papel para as plataformas digitais, mas o toque suave da celulose, o aroma aos blocos recém-comprados, os gatafunhos, ainda lhe corriam nas artérias.
Agora parecia ter a mesma doença dos guitarristas, com a polpa das pontas dos dedos calejadas, do teclar.

Muito baixa e activa, tinha o olhar dum obscuro indefinível. Quase azul-meia-noite. Ruiva. Cortejada.

Em Oeiras, o Café da Esquina tornara-se um ponto de encontro consigo mesma.
No outro dia, ouvira um suspirão no canto da sala iluminada débil, e com asseio.
Um tipo loiro meio curvado à mesa, e que não sorria, durou mais duas inalações para o refazer. Sem dor.
Ana, para os amigos, nem tinha reparado, mas ouve um suspiro mais alto que ele deixará fugir inadvertidamente. Ela apanhou do chão e sentiu vontade de lhe devolver.

E perguntar. É teu?
Assim na primeira pessoa, nem um você, nem o senhor, nem vossa excelência.

A angústia transbordou dos seus olhos, assim que ela se chegou tão perto com uma desculpa inventada, à pressão.
O quê? Olhando-a para a mão-cheia de nada.

Podias suspirar mais baixo? Continuou na primeira pessoa.
Quero pensar!

Com o mesmo ar que nunca chega a ser sério pediu-lhe perdão. À moda antiga.
Olhe, sempre na terceira, é que isto não vai nada bem. Ou melhor, isto não vai bem nada, corrigiu. Sem perceber onde arranjou coragem para manter este diálogo estranho.

Anastácia era mais vivida socialmente e, atraída com suspirões, lá lembrou-se de lhe perguntar o nome.
Num meio tom, a resposta foi, Filipe.
Isso quer dizer amigo de cavalos, não é? A rapariga corou.
Fez que sim, com a cabeça, o corcovado.

O meu nome é Ana! Apressando uma intimidade.

Filipe fugiu.

Pasma com este comportamento, Ana voltou ao seu Café da Esquina, mas agora mirava insistentemente o canto com asseio e iluminado débil.

Quando chegava a casa, ia para o portátil e tinha excesso de inspiração.
Projectou, sem encomenda uma catedral, para o Portugal dos Pequeninos. Fez uma ponte que ligava o Canal da Mancha. No estilo Manuelino. Criava palácios embutidos nas florestas do Marão. Como se fossem mesquitas garridas.

Não dormia como dormia.

Ao rever Filipe, sentou-se na sua mesa, sem autorização e com um bom-dia.

Quando ele ia fugir, não evitou segurar-lhe na mão para o impedir e sentiu. Um infaíscar. Uma físico-química inesperada, mas sabida.

Sentados começaram o conhecimento mútuo. Mais iluminado dela, mais sombrio o dele.

Um pensamento rodeou Filipe.
Um suicida de família, com uma mãe deprimida desde que nascera, e um pai que se suicidara à sua nascença numa árvore, com um nó cego.
O dolo era a sua cara.

Da primeira vez que vira o Centro Comercial Palmeiras a erigir, sabia ser esse o seu destino. O ponto final.
Ana fizera em papel, ainda, a projecção do último andar, um número primo. Em conversa animada soube.
Fatalista de íntimo, percebera, então o porquê.
Como uma mulher tão vivaz podia estar a impor-se tão sumariamente.

Na escola, até ao mestrado em Como Enfiar O Rossio Na Rua Da Betesga, fora ridicularizada pelo nome.
O apelido, isto é. Todos os conhecidos a tratavam por Anastácia Eutanásia, o que ele queria dizer, em grego.

Até há pouco, ela, instruída e culta, associara o seu apelido e motivo de chacota aos doentes terminais. Ou tetraplégicos.

Assim que se levantaram da mesa do café, trocaram números e combinaram combinarem algo para fazerem juntos, um desses dias.
Ele interesseiro, ela interessada.

O número dele tinha muitos setes. Uns sete. E cheirava a desgraça. Um perfume que, não sabia como, conhecia.
Ficara com a vontade extrema de lhe ligar logo ao virar da esquina, fazer uma graça, mandar uma mensagem escrita com um poema, ou um sonho, ou um atrevimento.
Mas conteve-se.

Os filmes da televisão que assistia regular, e a própria regularidade das experiências anteriores, mandavam-lhe que o homem, homem fosse.
Ia esperar uns dias. Depois ia ser uma mulher do agora e tomar a iniciativa.

Foi depois de amanhã, que chegou ao fim das quarenta e oito horas da praxe.
Ao minuto que fizeram a troca dois dias passados, Ana ligou.
Uma voz sumida e tímida atendeu, incrédula.
Quem fala?
Pareceu-lhe ouvir.
É a Anastácia, não gravaste o meu nome junto com o número que te dei?
E, já agora, quantas mulheres to deram em dois dias?
Retorquiu divertida.

Ah! Olá.
Sem grande vigor.

Com o pensamento na planta do centro comercial, Filipe manteve uma conversa circunstancial, as únicas que sabia fazer.

Combinaram um jantar sem velas num sítio lúgubre, não muito longe do cemitério, por acaso.
Sem saber porquê, Anastácia viu-se a levar as plantas em papel vegetal, para um restaurante desconhecido dos dois, e com mau cheiro a fritos.
Sentaram-se numa mesa para quatro, pediram o prato e o vinho tinto da casa.
Numa conversa sem sal, ela derretia. O mágico nele desconhecia. E deu por si a tirar os papéis do canudo. Sem se questionar.
Sem se questionar, viu-o a olhar para o décimo sétimo andar com especial gosto, mais do que para com a comida, e mais do que para consigo.

A conversa não avançou mais. O loiro soturno tirava medidas, não a si, e fazia apontamento em vez de poemas.

Filipe levantou-se antes da sobremesa e saiu deixando a conta por pagar.

Não voltou a atender as chamadas que ela insistiu durante semanas.

A arma de nove milímetros veio parar às mãos de Anastácia Boa-Morte por engano.

Foi levantar aos correios uma encomenda com aviso de recepção, que lhe pareceu estranha, embrulhada em veludo preto e com um laço com o seu nome.
No interior estava escrito na caixa, a letras góticas: mata-te, ou mata-me!!!!!!!

Colhida por uma fúria que nunca tivera, caiu de joelhos e amaldiçoou-se, e à sua sina.

Seguiu-o pelas ruas de Oeiras que, em conversa nesse horrível jantar, se lembrava ser seu poiso.
Andava armada com a pistola, com um coldre que ela própria comprara, à vaqueiro do Oeste, como nos filmes de Sergio Leone.

A sete de Julho, depois de uma noite passada em Branco, viu-o mexer-se no escritório da funerária onde passara a noite. Právidatoda, tinha um nome eterno. Reverberou no suspiro.
Não era a pessoa certa para ter arma, pensou novamente.

Queres que morra, não é?
Vamos ver quem sai vivo.

Um duelo tão desigual.
Ela nunca disparara uma arma, ele nunca uma tivera.

Filipe chega-se à janela, com um meio sorriso nos lábios.
Ana pensa que ele deve ser um maluco por paisagens, e um sacana sem lei.
Entra no escritório ao lado e quando viu a cabeça doirada assomar à janela...

Disparou.









Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

 
Autor
Rogério Beça
 
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