Dos livros de bolso
Anúplio Espírito Santo tinha noventa e seis anos.
Ainda vivia na casa da sua mãe, herdada há pouco. Eram longilíneos no tempo. Lá prós lados da cidade de Évora.
A lonjura acabara consigo.
Enterrou dois filhos, e enterrará três netos de acidente de viação.
Os filhos, já falecidos, morreram de velhos, isto é, um com um enfarte, aos setenta e o outro com um AVC hemorrágico, dois anos após, com setenta e seis.
Lembraram-se todos de ir para a terra, seguindo uma estranha tabuada do dois, de há seis anos para cá.
Caminhava seis quilómetros por dia, devagar e com vagar.
Isto porque há trinta e seis anos achara, num vilarejo próximo, um alfarrabista com pouca idade.
Agora com quarenta e oito, Santiago, passara a vida toda a cheirar a velho. Tinha um vício inconfessável ao perfume do papel, usado em páginas escritas com mais três década, ao menos.
O Pai, de quem herdara a loja, tivera o alfarrabista também assim.
Tinha um nome pomposo. Alfarrábio. Porque óbvio, e queria-se irónico e diferente.
Quase no centro, inicialmente foi pensado para se chamar Gil Vicente, como o eborense.
Livraria Gil Vicente parecia um pouco teatral. Tinha tido que contratar um actor para a caixa, ou um encenador para a contabilidade.
Assim, um rapaz da faculdade de letras usava o part-time, da parte da tarde, para pagar as propinas e parte do alojamento.
Era um macambúzio de dezanove, que estudava literatura neoclássica e iniciava-se na arte de escrever.
Sorrisos, nem vê-los.
Apenas mostrava competência alfabética. A mãe dizia-lhe que, o mestrado, era uma continuação de família. Ele hesitava, mas desde que chegara a Évora, vindo do Norte, que lhe comichavam os sotaques.
Anúplio embirrava com ele.
Depois de almoçar o costume almoço, que fazia com acostumado prazer, lá ia digerir o dejejum mínimo, para o Alfarrábio.
Nas duas horas que levava, ouvia Amália, que escolhera criteriosamente para a sua playlist, o smartphone era uma das últimas recordações do seu caçula.
Amar Amália, era a única facilidade do seu ser. Um velho ser, ia pensando, enquanto a sua ida tartarugava.
Já nem cãs tinha, nem se lembrava da cor das suas pilosidades, em nenhuma idade. Foram substituídas, há duas décadas, pelas rugas, autênticas autoestradas de pele a ressequir.
Continuava hirto, seco, impaciente com o moço e conversador com Santiago, que fazia-lhe lembrar o avô, seu amigo de infância.
Demógenes tinha trabalhado numa tipografia, e assim que o filho abriu a livraria, era um interessado.
Os livros quase não eram vendidos.
Santiago fora demitido sem justa causa, da Biblioteca Pública de Évora por dois motivos. Um deles inválido. A primeira bibliotecária acusara-o de assédio sexual e excesso de zelo.
O horário mantido na bicentenária era tranquilo, e permitia a qualquer ser de vaga esperteza gerir o esforço e o tempo. Santiago trabalhava demais. A D. Celeste sentiu uns certos calores íntimos quando o contratou, mas ele era só livros. E quanto mais velhos, melhor.
Há algo de muito cruel numa mulher desprezada.
O motivo que o levou a aceitar com paz a demissão é insuspeito. Desde cedo, na escola, não conseguia enumerar a ordem alfabética. Era capaz de identificar as letras e os algarismos, descodificar qualquer texto, resolver funções derivadas de segundo grau, mas era incapaz de passar de A para B. Ou C.
A organização da livraria do Pai era feita por si. A freguesia não dava com os métodos de pesquisa que eram encontrados em todo lado.
Até ao ponto de serem por tema ainda corria tudo muito bem. Depois, o critério era chamado de Procura Santiago.
A Procura Santiago era simples, não se procurava. Ia-se ter com o Santiago ele ia à maquineta com ecrã plano, e o portátil da Apple dizia onde os encontrar.
O algoritmo que Santiago criara numa pós-graduação de programação, facilitava a sua vida após a herança.
Ao introduzir os dados no programa, ele indicava em segundos onde o arrumar, assim que chegavam das editoras, ou de uma pesquisa noutros alfarrábios que fazia pelo país e estrangeiro. E onde os encontrar.
Entre conversas Anúplio, envelhecido pelo injuriado tempo, ia conhecendo modernices como esta.
Mas adorava deixar o Santiago e o universitário em pólvora, prestes a rebentar, quando ia na sua impressa às Estantes.
Remexia em livros da sua idade, com que se parecia...
E que falavam sempre consigo.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.