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O treinador de bancada que gostava era de bailado

 
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Do fanatismo


Era lagarto desde nunca. Um sempre confundido com o berço. Sem ouro. Ainda assim, tinha uma altivez nobre, uma sobranceria inata. Estava-lhe no sangue verde.
Com orgulho, exigia ser chamado de leão, embora o frio sangue o traísse.
O incrível é que o seu nome era Leão, como Tolstoi. Decidira o pai austero.
Então, Leão Lagarto era um gigante sereno. Dois metros e vinte e dois de serenidade.

Ser do Sporting era a malapata feliz que possuía.
Com cinco décadas, tivera mais alegrias do que tristezas.
Ouviu, em petiz, a história dos cinco violinos, como se fosse a de uma orquestra de cinco cordas, as sonatas de Beethoven ou, as sinfonias de Bach, corriam-lhe os pensamentos, ao cerrar o olhar claro.

Careca desde os vintes, é hirsuto.
Veste sempre um fato imaculado, como se fosse, a toda a hora, para uma entrevista de emprego, ou a um casório. Apenas de uma cor. Verde.

Estudou no conservatório, o já gasto e velhinho. Cursou de como dar música aos outros. Porque detestava vendas.
Organizava sempre eventos ao ar livre e de livre-entrada.
Cada bilhete, cobrado em recintos culturais nas situações em que convidava artistas de carreira e não alunos, tinha o destino do pagamento dos serviços prestados dos primeiros. Os últimos, eram pagos em aplausos, quando merecidos, e em experiência, ou em apupos.

Trabalhava neste trabalho que o completava "pro bono".

Um dia, por engano, pediram-lhe para organizar e ensaiar um encontro regional de dança Jazz.
Quando chegou ao dito engano, a cerca de vinte cinco quilómetro da sua morada simples, em vez de músicos inexperientes e sem barba ou depilação, deu de caras com Maria.
Longa de pescoço, e cinco pés e meio do chão ao alto da cabeça, que convidava ao pecado.
A resposta na ponta da língua bipartida, sem sorrir, olhos cor-de-noite, e branca de neve.

O diálogo entre ambos começou em monossílabos.
Sim?
Começou Maria, que primeiro chegara.
Não!
Retorquiu.
Hã?!
E pararam as palavras engasgadas, trocadas por um discurso incoerente e feito de confusões.
Acho que estou no sítio errado... Afirmou, já mais concertado, Leão.

O meu nome é Maria. Onde devias estar?

E assim começou um romance que inesperara Leão Lagarto e Maria Doce.
Há um quarto de século.

Os ensaios foram sucedendo, e ele conheceu o êxtase dos monólogos pelo ar. A energia que fugia do corpo em palco para os braços do espectador. Os cheiros, o trinar da madeira pisada, a vibração do ar, como se um vento fosse, criado pelo corpo de bailado em que, mais tarde, Maria Doce se tornou “prima bailarina”.


Como organizador de espectáculos, Leão Lagarto não tinha muitos fins-de semana livres.

Os que tinha, começou a usar no seu fanatismo sereno.
Ia ao estádio. O Alvalade XXI , não tinha o charme das glórias do José Alvalade, mas estava mais bem equipado e moderno.

Lá da bancada onde, sentado, via, com um insuspeito prazer, as movimentações das duas equipas.
Premeditadas. Síncronas. Trabalhadas à exaustão. Feitas habitualmente para se tornarem um hábito, e não vítimas da sorte ou do azar.
Então, o mister era como um coreógrafo. Amiúde, assistia a treinos, e o treinador corria de volta dos atletas, geralmente de tenra idade, a explicar-lhes como posicionar o corpo, no um-para-um. Já na movimentação ofensiva, gritava para o extremo contrário aparecer na área para finalizar. Fazia, inclusivamente, linhas a espuma de barbear no chão.
Os centrais e os laterais tinham de estar em linha para colocar os outros em fora-de-jogo. Os médios tinham de coordenar movimentos entre eles e a equipa toda, como num harmónio, que tocava a música dum maestro caprichoso.

Anotava umas coisas num bloco sujo e opinava entre dentes das opções...


Trazia, sem saber porquê, um lenço branco no bolso, bordado pela esposa, pelas bodas de prata. Nunca o desdobrava.
Irava-lhe quando um jogador não fazia nos jogos o que se fartava nos treinos, sem saber que, nessa manhã, essa estrela sobre-recompensada, não dormira pelo filho, doente em casa, com a mãe.
O treinador apostara nele à mesma, é porque fora a melhor solução (pensava).

A serenidade de Leão Lagarto, era como um bichinho que lhe rondava o juízo, que só fugia, se houvesse perigo real para Maria Doce, cuja maneira era cautelosa.

O Sporting, por vezes, goleava. Nesses dias, Lagarto saía de alma lavada.
Quanto aos campeonatos perdidos à última, dava mérito ao campeão, embora não fosse cego às injustiças.

O espectáculo em si é que o fascinava. Os golos de fora da área. Os cortes acrobáticos na linha de baliza. Os passes milimétricos. Os desequilíbrios. As paridades. O suor, a relva, os gritos dos jogadores e das bancadas.

Faziam-lhe lembrar a mulher em palco...


Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

 
Autor
Rogério Beça
 
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