Sobre a riqueza interior, ou do ser simples só na algibeira
Molepobre José Moreno tinha um céu aberto, e tecto sob ponte.
De cada vez, e eram tantas, que um mendigo partia, lá para os lados do infinito, escrevia um soneto ao decassílabo, deixado à beira da vala comum.
Entre os da sua raça, a pobre, já era conhecido pelo Sonetos, por essa subjectividade.
Era um, "ó Sonetos para Aqui, ó Sonetos para Acolá".
A ponte sob a qual descansava e, quando conseguia, dormia, era pequena. Uma passagem para peões, sobre uma auto-estrada. Era uma via que ligava exactamente Aqui e Acolá.
Duas cidades, que faziam parte do país com o nome mais pequeno conhecido: Lá.
Molepobre José Moreno vivia Lá com intensidade. Lá vivia, desde que nasceu.
Era um nacionalista convicto, que apreciava os mendigos que lhe faziam o favor de cantar aos Domingos, de madrugada. À capela, claro.
Era também gordo. Por mais fome que lhe passasse por cima, nunca emagrecia. Nem adoecia. Nem nada.
Era um sem-abrigo de profissão, para a qual era mesmo vocacionado.
Um dia, em que passeou a pé mais do que devia, levado pelos pensamentos distractivos, chegou tão longe, que quase chegara a meio caminho de Aqui.
Era longe. Difícil chegar, a Aqui.
Havia quem levasse anos, ou uma vida toda.
Chegou à sombra duma árvore, seca e desfolhada, e sentou-se numa raiz, pouco saliente. Quando queria sentir o que sentia ao encostar-se seminu ao tronco, apenas áspero veio-lhe à ideia.
Mas estava a saber-lhe bem, o descanso.
Começou a mirar o céu, a cumprir o ritual sagrado de contar nuvens, e adivinhar-lhe as formas, dar-lhes vidas novas.
Um dragão, uma esfinge, um bando de avestruzes, um pégaso, Fernando Pessoa...
Quando se viu dorido, apoiou os cotovelos no chão e, para baixo, olhou.
Folhas, terra, pedras do tamanho da sua mão e menores, formigas com asas, aranhas amputadas (teve dó) com sete membros, bichos-de-faz-de-conta...
Chegou a duvidar que Aqui estaria perto. Faltava-lhe um espelho.
A caminho, da Casa Sob a Ponte, a passagem pedonal, ia vendo os transeuntes com renovado vigor.
Achava graça nas suas roupas, sorrisos, vozes que quase ouvia.
Não chegou a ir à fala com nenhum deles, não podia dar-se ao luxo de dormir sob outra ponte qualquer, ou com a lua a topar-lhe os cabelos ralos.
Estugou o passo, por isso.
O povo começou a parecer menos povo e mais manequins, como os que via nas montras das lojas, da Rua Que Lhe Deixava Entrar.
A sete quilómetros, desacelerou.
Reparou numa velhota, estendida no chão alcatroado, com alguns vizinhos a ver sem quererem lhe tocar.
Parados à sua frente, perguntou, desmiolado, o que ela tinha e as sombras desses vizinhos, murmuravam-lhe que estava morta.
Mais por instinto, desviou a maralha e palpou-lhe o pulso carotídeo, e iniciou as compressões atrapalhadamente (dois dedos abaixo do esterno, ou será acima, mão esquerda sobre a direita, ou não, ou seria ao contrário, deixa andar...).
Às trinta parou, e ia fazer o afamado boca-a-boca, e ainda houve quem tentasse evitar o beijo, que repeliu, com um safanão.
Chamem a ambulância, já, bradava aos outros, sem saberem marcar 112.
Meia hora ida, ainda ouviu a sirene, e sentou a velhota um pouco acabada, deixando-a retomar as cores rosadas.
Partiu à bolina.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.