Do sentido poético
Riscara todas as paredes claras com tinta-da-china.
Assassinara-as com o nome de guerra que lhe foi dado. Teo.
Teodora Jasmim fora estudante de artes no secundário.
O mestrado em Coisas Bonitas não era certeza de trabalho, e ainda menos de emprego.
O spray de marca Marca Branca mostrou-se uma transição difícil.
Afinal, quantas maneiras diferentes se pode escrever, vá pintar, Teo?
Teodora, Dora para os amigos e família chegada, era divertida, e simpática. Nada a perturbava, e tinha, desde a média adolescência, tendência para transes gráficos.
Encarapinhada, loira nórdica e olhos a entrar para a noite, metro e sessenta e seis.
Quando transava, era do pior. Com o que tinha à mão e na mão, parede ou muro, fazia um Teo que lembrava deus e o diabo.
Aos cinco anos a mãe dissera-lhe que o seu nome significava “dom de Deus”.
Pode ter sido a causa-efeito que provocou semelhante bem.
Incerto dia, numa noite estranha e com Branco, como por magia, o Teo pintado passou-se da parede na Rua Tal de Sabe Se Lá Donde, para a estrada, saltando. Deu-lhe um linguado demorado e frio. E fugiu à velocidade solar.
Dora, desconcertada nas suas jardineiras da tropa, ainda a refazer-se do transe e do beijo, não teve jeito para compreender o sucedido.
Era grave. Nem dera conta...
Foi exausta, como de costume, para o quarto que alugava em Algures.
Algures era uma vila calma e absurda. Ficava sempre mais longe que perto, independentemente do ponto de partida. Era trabalhoso lá chegar. Era mais de lá sair.
Estendida na cama de renda de linho sentia-se enamorada de Teo.
O beijo a seco, deixara-a húmida.
Mas algo lhe dizia que, à velocidade que partira, tinha sido roubada apenas daquela vez.
Ainda entristeceu algumas semanas do desconforto, mas seguiu com os projectos de pintura não rupestre que se tinha proposto. Alguns pela câmara de Sabe Se Lá Donde, outros clandestinos em casas particulares, com a particularidade de ter fãs na Judiciária.
Passou-lhe o linguado da cabeça ao fim do tempo que finara.
Nunca procurou homem, nem seria então que o ia fazer.
Andava com uma mochila com spray da Marca às costas, sempre por onde andava, até em casa, até na cama, até durante o coito. Pagava.
Os seus Teo tinham tal fama, que deixara de procurar o tal emprego que nunca viera.
No transe seguinte aconteceu o que não sabia.
Caiu inanimada e nenhum Teo conseguiu pintar. Tinha fugido do peito.
Ainda o procurou pelas ruas da cidade, mas apenas ao sol estava à vista. No sol.
Então, tentou o MiM sem transe. E falhou.
O transe demorou dezoito meses a voltar e a retirar-lhe um pouco da fome.
A câmara pagava-lhe à peça e as peças tinham evaporado à aceleração do sol.
E dessa vez, um inesperado arco-íris veio-lhe à mão.
Extenso. Largo. Com detalhes pontilhados a expressar texturas e ritmos. Pixéis.
A complexidade era tanta, que foi alvo de estudos pelos mais variados quadrantes de arte urbana.
Era beleza pura e dura.
Ela sorriu, parva, quando os mestres que ela seguia a seguiram, por toda a parte, sem conseguir dar um único suspiro ou explicação do como acontecera.
O linguado ainda na boca.
Era de MiM que falavam, a sua nova assinatura, o fecho do seu nome de baptismo.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.