Sobre a eutanásia
Morreu com um tiro de bala, na têmpora direita, de poucos milímetros.
O Filipe era cabisbaixo e alto. Demais. Ensimesmado.
Corria-lhe no hemograma uma árvore de gentes suicidas.
Sabia-o desde petiz; pelo seu pai. Homem esguio e sonhador.
Apesar do seu porte, ao invés, atlético, trazia na corcunda uma figura de Atlas. A cifose discreta. Uma sina.
De olhos louros, tez morena, cabelo sempre rapado, namorava a Solidão desde sempre.
Tinha paixões avassaladoras não correspondidas.
Havia, em cada desmomento, uma qualquer rapariga louca por si, que lhe escrevia cantigas de amigo e sonetos de amor em segredo.
Não sabia a palavra. Nem por si mesmo.
Quando soube que o seu nome vinha do grego, em vez do latim, e que queria dizer “amigo dos cavalos”, dum livro de nomes próprios, deu-lhe vontade de sorrir. Era raro.
Como não podia deixar de ser, não tinha data de nascimento. Nem certidão.
Incerto, sabe que nasceu.
Em Vila Real era orgulho nascer em casa. Uma parteira com fama de bruxa incitava ao bruxismo nas parturientes. Lavava as mãos com água fria e limpa. Numa bacia de barro branco a água escaldada fazia o resto. Dava vida.
Desde que morava em Oeiras que cultivava a praia, sem prazer.
Cirandava a fugir e a perseguir sombras longas, marcadas. As suas companhias e companheiras.
Quando se orfanou pela última vez, soube qual seria a sua sina, que abraçou sem dor.
A Mãe tivera depressão pós-parto toda a vida, o pai acabara numa árvore com um nó cego.
Suicidar-se nunca foi um tabu, nem mito. A ideia crescera consigo, e era quase da sua altura. Alta. Demais.
Apesar de não saber a palavra, aproveitava os documentários em língua materna que davam na televisão do vizinho da frente, embora o vizinho tenha pagado o aparelho e contribuir regularmente nos impostos um custo de antena, ou coisa assim.
Nos tempos mais recentes ia para a biblioteca municipal da sua freguesia, para a frente de um computador à antiga, procurar como se suicidavam, a maioria.
Pedia, submissamente, à bibliotecária que lhe escrevesse as palavras do algoritmo pretendido e, com o rato, marcava a seta numa imagem qualquer.
Aborrecia-se com a falta de imaginação dos suicidas.
Começou a puxar tristemente pela cabeça.
Sempre desenhara bem. A Mãe entre choros deixava-o no quarto obscuro, com uma caixa de lápis da Caren D’ache que fora do pai. Trinta e seis.
Só faltava o Branco. Todos os outros, se não os afiasse cresciam.
Os planos que começava a criar, eram maquetes de banda desenhada muito expressivas, ao estilo de Caravaggio.
Nas pranchas ilustrava, nas elipses, morbilidades. As vinhetas ficavam sempre em branco, o único lápis que se via obrigado a comprar.
A ideia que mais o fascinava, embora fosse incapaz de fascínio, era a defenestração.
Na Banda Desenhada que usava para escrever, cheia de altos relevos e detalhes minuciosos, riscara centenas de saltos desiguais.
Em Oeiras não haviam muitos lugares bons para atirar-se duma janela. A ideia de acabar nos baldios do Cacém não o animava, nem nada.
Até que um dia, viu o início da empreitada que vira a ser o Centro Comercial Palmeiras.
Num ai, vários andares corromperam o horizonte, e até Filipe andava com um novo andar.
A vertigem resgatara-o ao silêncio por breves instantes. No penúltimo piso a contar de baixo, a vista para o mar era longa, a do chão deu-lhe o segundo sorriso deste conto. E de todos.
Na manhã seguinte, foi ao décimo sétimo e esperou até à noite, para não ser impedido por nenhum segurança hipervigilante.
Ia de calças pretas e um pólo pardo da feira, que há às quintas, junto à estação.
Era um escritório duma funerária chamada "Právidatoda", onde se acabrunhou num canto sombrio.
Chegou à beira da janela para apoiar as mãos, e de cabeça de fora...
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.