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SABER POÉTICO

 
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SABER POÉTICO

Às vezes me pego discutindo sábios, como se eu fosse um também. Não sou. Respeito muito aqueles que alcançaram grandes luzes e, mediante muito esforço intelectual, passaram do estado em que se dedica a sabedoria alheia e se arvora a si mesmo propositor de saberes e sabedorias. Não me encontro entre os segundos e mal me encaixo entre os primeiros: Estudo, aprendo, escrevo… Não apresento ao incauto leitor que se depara com meus alfarrábios a ilusão de que haja um sábio ditando as palavras ali escritas. Não mesmo. Não ofereço conhecimento em versos, apenas poesia. E o que é poesia? Penso que poesia seja uma forma de escrita que se exige peculiar.
Diferente da prosa, o pacto de comunicação exigido com o leitor mostra-se de natureza por vezes idílica e por vezes excêntrica, mas nunca apenas literal. O poeta oferece textos que não têm necessariamente utilidade óbvia, tal como têm receitas de bolo ou manuais de equipamentos…

Em tese, ler ou não ler um poema não faz qualquer diferença na vida de ninguém. Ninguém se torna doutor em nada lendo frases em estrofes, com rima ou não. Não há utilidade em se conhecer a obra de poetas como há em se conhecer filósofos ou cientistas. Não há mesmo. E isso não é demérito para o poeta, pois, o texto poético é de outra natureza. Mesmo quando defende ideias nos versos, há-que se considerar que, em poesia, mais importante do que a lógica e o sentido das palavras é o efeito que causam. Há quem entenda poesia como uma espécie de caçada de calembures, ou melhor, a busca por trocadilhos sonoros e gráficos que façam sorrir pelo inusitado. Muitos autores são notórios achadores de jogos de palavras, criadores de sonoridades herméticas ou rimadores inusitados. Sabe-se lá porquê, esses efeitos especiais do idioma fazem brilhar regiões especiais da massa cinzenta que nos comanda o corpo inteiro e acabam por nos chamar a atenção.
Além de fingidor, o poeta é um extraordinário. É alguém que foge do destino comum de fazer dinheiro, obter boa fama, cuidar da saúde e viver confortavelmente para, pasmem, escrever textos "que digam algo a alguém". Não basta contar histórias que entretenham o público por alguns dias, como pretendem os romancistas e mesmo os roteiristas (esses sim, hoje em dia, bem remunerados). Não, o poeta, com raras exceções, não quer tomar mais do que alguns minutos do tempo do leitor… Quer apresentar seu "achado" dentre as douradas possibilidades do idioma para que a alma -  ou a consciência ou coisa parecida - se enterneça do que lê e sinta, eventualmente, o prazer no extraordinário que sentira o poeta diante do inusitado descoberto. Visto que -  entre glosas, rebuscamentos, imagens, metáforas… - algo além do significado das palavras se transmite. Repare-se que é justamente n'esses pequenos nadas que, comumente, o tradutor trai o autor, revelando que aquele efeito encontrado é algo limitado a um público e se vernáculo.

O saber poético, dito isso, mostra-se o conhecimento das peculiaridades do idioma aproveitado para tornar incomuns os textos que se diagrama em estrofes. Embora entenda que quem se expressa com métrica, ritmo e rima explicite seu desejo de ser lido como poesia desde a primeira linha, forçoso é admitir que muitos alcançaram a atenção poética do leitor sem se valer d'estes artifícios. Em verdade, a forma por si só não confere ao texto o estatuto de poético. A rigor, texto poético é aquele que acompanhava a melodia de canções curtas na Baixa Idade Média… As formas poéticas herdam esse malabarismo textual que é escrever com artificialismo de frases rimadas entre si no momento em que os músicos - cada vez mais reconhecidos nas cortes europeias - passaram a escrever peças para suas orquestras sem necessidade de textos para a vocalização de cantores… Quando a música de corte passa do popular para o erudito e se manifesta como expressão de sofisticação, riqueza e poder d'um senhor e sua casa, a poesia sobra como texto incomum cultivado por letristas sem música para pôr letra… Se a poesia dos Cancioneiros é basicamente letra para música de trovador, a poesia dos Quinhentos, entre a medida nova e a medida velha, são letras para formas fixas sem música.

Dir-se-ia que tanto os músicos quanto os poetas obtiveram mais liberdade expressiva com tal divórcio, mas facto é que esse movimento tenha sido, sobretudo, elitização artística, visto que a música popular continuou existindo com letra e música. É a música erudita e a poesia humanista que se afastaram dos folguedos populares na ânsia de alcançarem públicos cultos o bastante para lhes perceberem as subtilezas. Camões escreve para o rei e seus fidalgos, não para a marujada. Bach escrevia para outros músicos a soldo de banqueiros, não para os beberrões do mercado… O problema é que a música popular não era registrada como eram a música erudita e a poesia aristocrática. Sobretudo por isso que o desenvolvimento da poesia e seu território de saber se tornou cada vez mais literário, logo, mais próximo dos prosadores de crônicas de gazeta e dos contadores de histórias publicados em livros do que dos cantadores populares cujas letras simples tendiam para os refrões mnemônicos acompanhados d'um violão e um tamborim. Não é de se surpreender que no século XIX já se observe certa tendência para se fundir poesia e prosa n'um só território, i.e., o literário. Entendendo-se, vale dizer, literária como uma expressão mais sofisticada da escrita em oposição aos textos técnicos e jornalísticos.

Na verdade, essas distinções conceituais acabam não dizendo muito: Se tudo for poesia, nada será poesia… O saber poético propõe-se como um filtro diante da realidade. Ver as coisas d'este mundo sem a objetividade do cientista ou a especulação do filósofo. Ver, sem se contentar com o lugar-comum dos letristas de canções populares (obcecados em agradar o público!). Ver, sem se preocupar com o rótulo de literato-grande-escritor que não lhe auferem para abstrair da existência uma dúzia ou mais de versos que se possa ler em paz.

Betim - 03 06 2020


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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