Aqui por dentro do Alentejo
Há coisas que só eu vejo.
Passam mais coisas
Do que as que se passam:
Passa o sol,
Passam as nuvens,
Passa o vento,
Mas passar, não se passa nada…
Passa o verão bem dourado,
Passa a primavera colorida,
Passa o outono e leva a alegria nas folhas,
Passa o inverno frio e lento
E a trovoada malina
É a única fonte de adrenalina.
Até o tempo teima em passar
Mas nem parece,
Os anos também vão passando,
As dores vêm e vão,
Os cabelos grisalhos vêm e ficam,
Alguns caem, heheheheh
As visitas, raras, acontecem
Adivinhando as despedidas
E fico outra vez só…
Aqui no horizonte
À volta do monte
O silêncio farta.
Com um esforço, até consigo ouvir
Os passos da minha sombra.
O padeiro é semanal
Com um dia de pão mole,
Era bom que me trouxesse um jornal
Mas vem sempre com pressa.
Aqui não há disso
Pressa para quê?
Só se for para morrer!
E a memória?
Memórias daqui tenho-as eu,
Agora quem cá vem
Também as deve ter
Mas levam-nas com eles,
Não fica cá nada,
Só eu com saudades de quem parte…
E a música?
A música, de dia, está sempre ligada,
A música da natureza:
Os badalos do gado,
A água correndo na ribeira,
Os pássaros cantando,
O canto longínquo das raposas
Conforme deixa o vento,
O cacarejar das galinhas
Submisso à mestria do galo,
O grunhir paciente dos porcos,
Ouve-se de tudo um pouco.
E eu às vezes também canto
Mas ninguém pode ouvir,
A lotação está esgotada, hehehhe
A minha alma comprou os bilhetes todos…
Ah, e também escrevo
Mas aqui ninguém sabe ler,
A solidão tem destas coisas.
E a esperança?
A esperança fica tão longe
Como daqui à vizinhança.
E eu até que gostava de morrer depois da esperança
Mas ainda ninguém conseguiu, heheheheh.
Nascer para ser feliz