Da xenofobia
Há dias passei por uma brasileira de mãos dadas e fiz-lhe um filme.
Na onomatopeia que lhe ouvi havia um sotaque mineiro que lhe combinava com o tom de pele. Veludo, dum moreno lento e sambado.
O alfacinha a seu lado tinha um ar anafado e de sentido de humor fácil e rebelde.
Vi-lhe as favelas na carne, os bairros de lata, a via conspurcada e atempadamente asseada. Uma irmã mais velha e acabada que lhe e-mailou de Portugal, numa escrita diferente e acentuada.
Dizia-lhe das virtudes da segurança social portuguesa, assegurava-lhe o clima melhor do que de S. Paulo e dos gatinhos que se gabavam de ir às putas.
Sem querer, empurrada por uma mãe sem pai, de olhar vivo, preocupado e envelhecido, entrou num aeroporto sul americano de esperança às costas, e pouca roupa na mochila parda: dois soutiens, um jeans, três calcinhas pretas, os mesmos sapatos de salto alto para tudo e brancos.
A saia curta, roçada, captou um carioca de quem ela desviou o olhar, com medo e vergonha e ciúme.
Da meia voz que rebolava e cantava, o nome do seu metro e sessenta e seis, meia-meia, tinha mais consoantes do que vogais. O pai foi húngaro. Um i pelo meio.
Loira falsa, verdadeira de timbre, exibia o sorriso, as frases trapalhonas que sabiam de cozinha, de fitness, de amor e amorzinho, e de muita porrada.
Aguentava direita as indirectas das lusas, cadáveres de inveja.
Tinha um verbo dar diferente, uma coragem a roçar a loucura e uma ousadia que um belo dia lhe trouxe o João.
A sair à entrada do trabalho, o nado na Alfredo da Costa em mil novecentos e oitenta, deu de caras com ela, num sai-me da frente atarefado e insubmisso.
A entrar para o alto, desengonçado e de barriga, quase que caiu aos seus pés calejados. Aos tropeços valentes, lá se firmou para evitar mais um traumatismo crânio-encefálico curado com um lava lá a cara, que isso passa.
Só, há mais tempo do que admitia sequer ao espelho, não se coibiu de enviar-lhe uma graça via parvoeira, gentil, atenta, personalizada, como a maioria gosta, seja macho ou mula.
Chovia cães e gatos.
Ia beber um café na Loja ao Lado (o nome exacto) antes do trabalho ir ter com o seu emprego. Não era infeliz a fazer o inesperado que lhe calhara.
Não ganhava mal. Acumulava nãos, sem ter o certo de este ser o seu destino, ou apenas mais um apeadeiro. Mas tinha-lhe gosto, um bom princípio.
A alopecia fugia-lhe a sete pés e conseguia, no seu humor desconcertante, dar ares de menos dez ou quinze. Mesmo.
Os da sua turma da faculdade tinham um acabamento de meia-idade. Um tinha partido com uma cirrose, o cancro queria levar mais dois, e não fora os restos que a cerveja e o sedentarismo marcavam, ele passava bem pela idade dela.
Ela não o repeliu, como à maioria, primeiro apenas porque não. Segundo, ele soubera respeitar a sua origem e o seu trabalhar.
Andava farta de cabrões nas redes sociais, que tinham a mania que tinham a mania.
Quando era a doer, nem um pedido de desculpas decente sabiam.
O João soube.
E quando aquela figura de olhar escuso lhe perguntou a graça, ela não teve graça para não responder.
Havia um "i" no meio e um "ele" no fim...
Mil e João trocaram olhares e números de circo. Um rir. E na versão alternativa desta história, foi cada um para seu lado.
Cá, cada um foi para o lado um do outro.
Num par de anos de anel no anelar esquerdo, veio o filho parecido com os dois.
Uma manhã a lua plena atravessou o lar.
A Mil nunca perdeu o sotaque, que encantava. Quando se passava dos carretos troava como os demais. Nunca pudera ser santa.
Alberto para João e Beto para a Mãe, o miúdo fora um bebé chorão que não deixava os pais dormir. Solícitos, responsáveis, carinhosos, apaixonados.
No liceu, tinha um falar arrevesado que denunciava a progenitora e o chefe de família.
João vivia sempre a aprender a casar-se, com uma fémea que lhe ocluiu os dias tristes. Lhe dava uma cama cheia de cheiros. Para quem cozinhava com deleite.
Trabalhavam no mesmo há quinze anos, sem pressas, nem mordomias.
Alberto era mais alto que o pai e mais magro que a mãe. Tinha quinzes na escola com algum vagar. Era astuto. Comprometido. Respeitado porque se dava o respeito.
Andava de miolo virado por uma miúda do décimo segundo, que lhe dava muita conversa cheia de perfume.
Ela andava sempre de calças, até quando saiam à noite. Com um decote a tesourar o pudor.
Em bicos de pés chegava-lhe à boca.
Ela era o nome que ele lhe chamava, a seu pedido. Felisbela, do padrinho não lhe soava bem.
Andavam picados para ver quem tinha a melhor média.
No final do décimo ele era dezasseis e Ela, no fim do secundário era dezoito.
Digamos que o luso-brasileiro lhe deixou ganhar.
Quando o João lhe perguntou para quando era o casório, Ela começou a cantar Marco Paulo, Anita, para precisar.
O futuro sogro riu aliviado e fizeram um coro.
Uma manhã a lua plena atravessou o lar.
Três lustres mais tarde, num monte alentejano, uma miúda muito cheia sorria no baixo da sua tenra idade. Eram cinco os verões que conhecia.
Numa voz arrastada, perguntava à mãe pelo almoço.
- Pergunta ao teu pai!, ouviu duma das assoalhadas do solar.
Beto repetia o que conhecia de cor.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
Eugénio de Andrade
Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.