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Textos de Quarentena 28

 
Via-se agora, a si próprio, como aqueles seus subordinados o viam, como o arquétipo de uma sociedade sem lei nem grei, individualista e sanguinária, onde a maior riqueza não era mais que a pobreza material dos conjuntos socialmente aceites pelas teorias filosóficas que se passeavam nos corredores do paço real, mas sim o que cada um conseguia amealhar para si, um espaço sem fronteiras e uma economia sem dinheiro, uma utopia generosamente perigosa.
Os raros momentos de lucidez enfureciam-no por lhe permitirem recordar o outro lado da vida que passara por si. As pedras da calçada também o enfureciam de vez em quando, quando, sentado num banco de jardim, se punha a estudá-las e a ler o que o íntimo de cada uma dizia, eram demasiado geométricas, roçavam uma certa perfeição arquitectónica e isso era, no seu olhar, contra natura.
Lembrava a mulher que o pariu com algum carinho, mas não a perdoava por nunca ter intercedido por ele. Aos três irmãos via-os como enviados de Belzebu, os verdadeiros culpados da sua actual condição, principalmente o empertigado, que era mais velho e que, sempre de nariz levantado e ar efeminado, lhe tinha tomado a futura mãe do seu filho por meio de chorrilhos de mentiras e presentes dourados. Ao irmão do seu pai, que lho tinha substituído na educação após o falecimento deste, desejava uma morte lenta e dolorosa... aristocratas sem cultura, como os apelidava.
Não lhe custava viver assim, custava-lhe que nem todos vivessem assim, que nem todos tivessem a oportunidade de ser naturais, sem aquelas asquerosas perucas brancas e as caras carregadas de pó de arroz e sardas falsas.
Uma vez por outra assistia a duelos estúpidos, levados a cena por causa de um mais assanhado piropo ou de uma mísera ofensa tirada de algumas garrafas de Château Lafite. O resultado era sempre o mesmo, ou morria um, ou morriam os dois. Mas ele achava piada a tudo aquilo. Os olhares amedrontados dos adversários a contrastar com os olhares avaros dos padrinhos, os diálogos sem sentido onde cada um recusava as desculpas do outro, a honra seria ali restabelecida, e as moedas, relógios e até pistolas que iam ficando esquecidos ou em que a inusitada distracção dos intervenientes permitia uma recolha rápida dos pertences... sabiam-lhe bem, davam-lhe vida.


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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