António e Luísa
E
Os gatos da rua parda
Miado número três
“And it’s your face I am looking for on every street”
Mark Freuder Knopfler
Os gatos que conversavam à porta da tasca parda, com um olho no tasqueiro e outro na sardinha que, na borrasca, acalentava o estômago magro de qualquer um, fosse gato ou tareco, nunca tal houveram murado. Nem nesta noite nem nas noites das nove vidas. Espalharam a notícia num miau. Havia um louco que dançava ao som do acordeão de um louco ainda mais louco do que ele.
Ficaram na primeira fila.
O instrumento tocava de forma sublime, pensamento na lua pelos olhos alienados do louco tocador. E cada nota era uma palavra, um sentimento, uma risada, uma lágrima, um temor ou um alento. António, o louco menos louco, dançava ao som delas, sem cigarro, sem cerveja e sem disfarce, somente ele, tal como era, só a certeza da certeza de estar certo do seu querer.
A melodia entranhou-se-lhe nos sentidos, deixando-o extasiado, tal como o marinheiro no mar sereno e enlevado das noites arco-irisadas de ópio. Embalado pelo canto do acordeão, António levantou âncora e zarpou rumo a bom porto. Com ele foram os gatos, corpo de baile felino, que não queria perder o apogeu daquela dança.
Ao virar a esquina da rua da oferta, António estacou, ao ver a orgia de pernas altas e nuas. O timing perfeito da hesitação, que o apanhou desprevenido num volutear risonho, confundiu-o um pouco deixando-o momentaneamente sem vontade de dançar. A coreografia deste stop motion foi quase perfeita, não fosse a sardinha presa pelo rabo à boca de um felino revirar os olhos em sinal de contestação, pois pela boca é que morre o peixe.
Pelo pé parecia ter morrido o querer de António, a julgar pelo passo dado atrás, mas as treze mãos direitas dos treze gatos que não eram pardos, nem tão pouco parvos, continuavam levantadas à espera do passo em frente. Lá mais atrás, na praça da loucura, o acordeão continuava a falar.
António levantou a cabeça e enfrentou o seu destino.
Treze suspiros se ouviram em uníssono e se quedaram mudos a um canto, expectantes.
Seios fartos em mãos ávidas, pernas abertas em pernas fechadas, por entre fumaça que passava de mão em mão, de boca em boca. Sorrisos falsos e cativantes que alimentavam as faces compostas e estudadas da oferta, sorrisos patetas e lascivos que expunham a luxúria da procura.
Por este plateau passeou António os seus olhos, em super-slow motion, captando cada pormenor, cada gesto calculado, cada olhar no olhar de outro. Sentiu-se deslocado. Subitamente apercebeu-se de que não era desta forma que teria de enfrentar os seus medos. Revoltou-se consigo mesmo por tamanha fraqueza de alma. E aquela música não pára! António escutou-a, vinha em crescendo, sempre a subir, sempre a falar com ele, sempre a aclarar-lhe a mente.
Então, viu-a!
Por uma nesga de corpos, António viu o olhar de Luísa fixado em si. Um olhar indefinido, tal qual o era a razão por que aquela mulher ali estava. Tal como ele, ela estava deslocada daquele tempo, daquela noite. Luísa, aconchegada na sua sombra, viu naquele homem a procura que tanto desejava, e no entanto, não queria que ele a procurasse. Mas a sua alma já pulava de alegria! Tira esse olhar de indefinição e mostra-te! Não vês que ele é igual a ti?
António percebeu que ninguém a olhava, tal qual ninguém o olhou a si, apesar de estar a escassos passos de ninguém.
Ela era igual a ele!
Ambos eram transparentes no sentir, sem luxúria, sem fingimento. O disfarce que cada um trazia colado ao corpo, não disfarçava a genuinidade do seu ser. Por isso eram invisíveis aos disfarces que por ali se vangloriavam. Que quem não sente não alinha o seu ser! Ao pensamento afloraram-se-lhe as notas do acordeão, sim, agora tudo fazia sentido! A música estava no seu apogeu. António sentiu chegado o momento! Era só um passo, o primeiro!
Foi então que um gato miou.