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Textos de Quarentena 22 (Sem Esperança)

 
As palavras que lhe saíam da boca entornavam-se lentamente em cascata pelo peito e corroíam-lhe a pele sem que o animal senti-se qualquer dor. O fim parecia próximo, já só balbuciava algumas formas de falar quase desgastadas pela fina brisa que corria da parca vida. A sua respiração ofegante assemelhava-se a vida que tinha levado e ao desdenho com que falara, no passado, de tantos quantos o rodeavam, cada vez menos, perdia os seus ouvintes de dia para dia.
Antes, ainda era mais novo do que agora, sentava-se no coreto do jardim a ler textos seus, a recitar poesia sua e a fazer inflamados discursos contra o poder que enclausurava e escravizava o pensamento e a capacidade de se ser. Agora não, de há uns tempos para cá a sua verborreia arrastada pelo chão sujo de beatas e escarros, atacava cada um que por ele passasse, qual cão raivoso cuja cegueira apenas lhe permitia ver máscaras em vez de realidades. A loucura tomara-lhe conta do corpo, da mente e da língua, não era mais que um miserável pedaço de nada a quem, de quando vez, atiravam ou pouco de pão duro e bolorento que, sempre desconfiado, ia sempre lavar nas águas estagnadas e fétidas do descuidado lago do jardim.
Aquele jardim que antes estava forrado de flores viçosas e coloridas e se adornava aos fins de semana com música, que de forma afinada era tocada pela banda da terra, tinha-se tornado num local de má fama, um mercado onde a loucura, a prostituição e a droga se comercializavam... sim, também a loucura era comerciável, através dos actos de assédio, de algumas violações e das palavras, como as dele, sem sentido. Um jardim que era passagem obrigatória durante o dia para quem se deslocasse, com garantia de algumas interpelações, de um lado para o outro do rio, só aí havia uma ponte, mas que se transformava num antro de crime à noite, não era raro ver uma poça de sangue no chão.
Ali os dias camuflavam-se em estranhos nevoeiros durante grande parte do ano, até o sol se envergonhava de se chegar perto, talvez ele próprio receasse a proximidade, provavelmente teria mais onde gastar a sua energia. As noites tinham períodos de estranhos e até assustadores silêncios de repente assaltados por gritos de dor e de vergonha.
Ele assistia a tudo isso e no meio de tanta loucura conseguira ali a sua imortalidade através do escárnio, era como um rei entre os seus pares, esses que ainda ouviam atentamente as palestras que dava no lusco fusco dos fins de tarde, um mundo à parte com os seus contornos mitológicos.
Nem sempre fora o louco que é agora, tinha estudado, vinha de uma família abastada que o matara por questões de política, tiraram-lhe o nome e o estatuto social, e ele amaldiçoou todos e todas as gerações seguintes, sem quaisquer resultados. A única vingança que conseguiu foi desgraçar a vida de alguns através da droga e daquelas palavras quase imperceptíveis que se penduravam nos seus lábios já negros.
Toda a sua figura era repugnante. De face escanzelada e olhar vesgo, uma acentuada corcunda que contradizia o estômago inchado, unhas compridas e de um amarelo a roçar o castanho e as pernas longas e arcadas que lhe davam um aspecto quase inumano.


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/04/2020 10:28  Atualizado: 09/04/2020 10:28
 Re: Textos de Quarentena 22 (Sem Esperança)


Temos que ter fé e esperança
tudo passa e o sol nasce todos os dias

um abraço poeta Alemtagus