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Textos de Quarentena 20

 
É interessante como se consegue assim galgar o mundo, andando de espelho para espelho, no entanto cada um tem de ter bastante cuidado, não vá ainda assim o diabo tecê-las e o meu não-eu se lembre de aparecer num espelho onde eu não esteja. Se tal acontecer a coisa torna-se complicada. Primeiro deixo de ser imagem, deixo de existir e o meu não-eu morre, simplesmente morre. Segundo, nunca mais chego perto de outro espelho, não posso, não tenho quem me olhe, passo a viver naquele espaço sem luz e sem escuridão. Terceiro, nunca mais veria o mundo através de tantos espelhos perdidos, nunca mais veria caras bonitas – mesmo que ao longe. Viveria como alma sem dono, perdida no limbo a sentir constantemente vultos e sombras a passarem por mim nas suas escapadelas entre espelhos, ou, na pior das hipóteses, arranjaria trabalho como assombração, aberração distorcida em espelhos de casas velhas, onde teria sempre a hipótese de sair em liberdade de vez em quando, ou seja, entrar no mundo real que também já foi meu… seria bom, mas não seria fácil e nunca mais voltaria a ser eu, de novo, seria outro alguém sem passado, frágil – porque quem não tem passado é frágil – e velho – porque decerto que de uma imagem distorcida, de uma malfadada assombração nunca sairia alguém de bom aspecto.
A vida neste mundo interior onde se nega a própria negação, onde o silêncio faz parte do quotidiano, onde se desaprende a falar, onde por vezes se cega por não existir nada para ver, faz-me pensar se eu não teria sido já assim, quando era gente, antes de, por maléficas artes mágicas – sabe-se lá quais –, ter trocado de posições com a minha imagem que agora sou eu, em vez do não-eu. Se o espelho reflecte apenas a nossa imagem ou se vai sugando a nossa essência cada vez que o olhamos, envelhecendo-nos. É curioso que quem se olha mais ao espelho ou são as pessoas que se tentam embelezar ou as que se preocupam em demasia com o aumento substancial das suas rugas.
Neste momento já nem ligo a isso, mas era capaz de ligar se estivesse no mundo a que chamo real. Já reparei que o facto de estar aqui há já tanto tempo não me vai emendar os erros do passado, o tempo por cá também não anda para trás, como julguei no início, resta-me pensar e esperar por um espelho disponível para ir dar uma volta a qualquer sítio que não conheça. Ou esperar pelo não-eu, a minha cara-metade.
Não, isto assim também não pode ser, tem de haver aqui por este limbo, este fim de mundo, alguma coisa de útil para fazer, não pode ser um marasmo eterno… ou sim? Terá sido por isso que a minha imagem me tirou o lugar? As dúvidas persistem e aumentam, e se as coisas aqui não forem como as imaginei ou descrevi para o meu íntimo? Estou numa prisão sem grades, sem guardas, apenas com um vidro à frente e nada por detrás, nem escuridão, nem luz.
Posso matá-lo! Se eu não aparecer no espelho, ele morre… e eu liberto-me!
Liberto-me! De quê? Da ignorância deste mundo interior sem som ou da sabedoria daquele outro ruidoso, aquele do lado de lá?
Matá-lo pesar-me-ia na consciência, é parte de mim, mato um pouco de mim, perco a minha imagem, perco inclusive a minha sombra, deixo de existir, suicido-me por completo. Isso faz com que a minha presença junto ao espelho seja uma obrigação para comigo próprio, não para com a minha imagem, para o meu não-eu. Não posso negar o meu não, o meu lado negro, não lhe posso negar vida, vontade, desejo, poder de decisão, não lhe posso negar nada do que já não me pertence.


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/04/2020 16:34  Atualizado: 07/04/2020 16:35
 Re: Textos de Quarentena 20
É muito bom trocar idéias.
Assuntos que não é interessante para pessoas que estão ao meu lado. Aqui não são apenas letras, aparência, mas relatos de sentimentos reais . Escrito com poesia, com todo cuidado , sabendo quê algumas coisas pode machucar.