Olho o espelho, despenteado, mal acordado, rezingão e, de olhos embaciados, percebo, algo tardiamente, que já em nada sou eu. Transformei-me numa espécie de ficção, na imagem longínqua do meu ego, o não do meu não, a esquerda da minha esquerda. Acho que o corpo me puxa no sentido inverso ao que quero fazer, ao que sei estar certo, puxa-me para o erro, a transformação enlouquece-me e inverte-me o desejo, ainda não estou bem certo do que se passa.
Ando um pouco e sento-me à janela a imaginar o Sol, sempre imponente, a nascer a poente… a nossa estrela quente e irreverente é agora um mero brilho insolente, sinto o tempo a voltar para trás nos ponteiros do relógio – tac-tic, tac-tic, tac-tic… –, talvez possa agora remediar os erros de outrora. Mas como? Teria de reaprender a ler, desta vez ao contrário, da direita para a esquerda, reaprender a andar… não, a andar não pois ainda agora vim a andar para a janela, apenas troquei os passos, passei a ter tracção à esquerda.
A vida lá fora, como será? Os outros ainda existirão, ainda serão os mesmos?
Tenho medo, medo não, receio. As cores do arco-íris não se trocaram, por exemplo, apenas nascem do lado contrário, vivo na simetria da minha realidade, mas noto uma coisa, aqui não há electricidade, nem ruído, não consigo desligar a luz no interruptor sempre que quero, sinto-me sem vontade própria, um fantoche, uma marioneta, por muito que diga não o corpo desrespeita-me, mas de repente ganho vida própria de novo, dantes não entendia, mas à medida que os dias vão passando vou descobrindo coisas novas, estranhas mas novas.
Todos os dia, em alguns mais do que uma vez, tenho de me confrontar com um espelho para que o meu não-eu me veja, tenho de fazer todos os movimentos que ele fizer, para que não estranhe a posição em que se encontra e depois, quando ele sai do campo de visão desse espelho, posso ir à minha vida, á descoberta do mundo dele. Um mundo sem luz e sem escuridão, onde apenas vejo o Sol quando para lá se vira o meu novo mundo – o espelho – ou até mesmo a Lua e as outras estrelas.
É interessante como se consegue assim galgar o mundo, andando de espelho para espelho, no entanto cada um tem de ter bastante cuidado, não vá ainda assim o diabo tecê-las e o meu não-eu se lembre de aparecer num espelho onde eu não esteja. Se tal acontecer a coisa torna-se complicada. Primeiro deixo de ser imagem, deixo de existir e o meu não-eu morre, simplesmente morre. Segundo, nunca mais chego perto de outro espelho, não posso, não tenho quem me olhe, passo a viver naquele espaço sem luz e sem escuridão. Terceiro, nunca mais veria o mundo através de tantos espelhos perdidos, nunca mais veria caras bonitas – mesmo que ao longe. Viveria como alma sem dono, perdida no limbo a sentir constantemente vultos e sombras a passarem por mim nas suas escapadelas entre espelhos, ou, na pior das hipóteses, arranjaria trabalho como assombração, aberração distorcida em espelhos de casas velhas, onde teria sempre a hipótese de sair em liberdade de vez em quando, ou seja, entrar no mundo real que também já foi meu… seria bom, mas não seria fácil e nunca mais voltaria a ser eu, de novo, seria outro alguém sem passado, frágil – porque quem não tem passado é frágil – e velho – porque decerto que de uma imagem distorcida, de uma malfadada assombração nunca sairia alguém de bom aspecto.
A vida neste mundo interior onde se nega a própria negação, onde o silêncio faz parte do quotidiano, onde se desaprende a falar, onde por vezes se cega por não existir nada para ver, faz-me pensar se eu não teria sido já assim, quando era gente, antes de, por maléficas artes mágicas – sabe-se lá quais –, ter trocado de posições com a minha imagem que agora sou eu, em vez do não-eu. Se o espelho reflecte apenas a nossa imagem ou se vai sugando a nossa essência cada vez que o olhamos, envelhecendo-nos. É curioso que quem se olha mais ao espelho ou são as pessoas que se tentam embelezar ou as que se preocupam em demasia com o aumento substancial das suas rugas.
Neste momento já nem ligo a isso, mas era capaz de ligar se estivesse no mundo a que chamo real. Já reparei que o facto de estar aqui há já tanto tempo não me vai emendar os erros do passado, o tempo por cá também não anda para trás, como julguei no início, resta-me pensar e esperar por um espelho disponível para ir dar uma volta a qualquer sítio que não conheça. Ou esperar pelo não-eu, a minha cara-metade.
Não, isto assim também não pode ser, tem de haver aqui por este limbo, este fim de mundo, alguma coisa de útil para fazer, não pode ser um marasmo eterno… ou sim? Terá sido por isso que a minha imagem me tirou o lugar? As dúvidas persistem e aumentam, e se as coisas aqui não forem como as imaginei ou descrevi para o meu íntimo? Estou numa prisão sem grades, sem guardas, apenas com um vidro à frente e nada por detrás, nem escuridão, nem luz.
Posso matá-lo! Se eu não aparecer no espelho, ele morre… e eu liberto-me!
Liberto-me! De quê? Da ignorância deste mundo interior sem som ou da sabedoria daquele outro ruidoso, aquele do lado de lá?
Matá-lo pesar-me-ia na consciência, é parte de mim, mato um pouco de mim, perco a minha imagem, perco inclusive a minha sombra, deixo de existir, suicido-me por completo. Isso faz com que a minha presença junto ao espelho seja uma obrigação para comigo próprio, não para com a minha imagem, para o meu não-eu. Não posso negar o meu não, o meu lado negro, não lhe posso negar vida, vontade, desejo, poder de decisão, não lhe posso negar nada do que já não me pertence.
Mas sinto falta da vida, de ver a minha cara, de tocar em alguém, sentir alguém a tocar-me. Sinto falta de ser gente agora que sou um mero espectro. O que me sobra é a memória, mas nem sei se essa ainda é real, tal é o desnorte. Lembro-me ainda de quando era miúdo e ouvia os meus pais a conversar sobre tantas coisas, por vezes discutiam, talvez por desacordo ou porque é assim que deve ser um casal, sei cá, nunca fui casal de ninguém e por este andar nunca serei, se nunca mais conseguir sair daqui. A não-vida confunde-me, faz-me deambular o pensamento por temas que nunca achei possíveis de existir, coisas enigmáticas como a própria vida e o que as pessoas achariam dela depois de mortas e enterradas.
Afinal o que é isso de ser «pessoa»? Quais são os requisitos para sermos considerados gente entre outras gentes? Sempre me ensinaram que deveria ser moderadamente moralista e, de preferência, deliberadamente pouco ético se quisesse chegar longe na vida, se quisesse pertencer à verdadeira elite dos que são verdadeiramente gente. Ensinamentos que sempre tentei pôr em prática – a maioria sem sucesso. Deveria ter sido daqueles «snobes» empertigados que papagueavam as palavras dos senhores doutores importantes, mesmo se nãos conhecesse, tipo advogado (matreiro, astuto, mas inconveniente e maldoso sempre que necessitasse).
A minha sina para hoje deveria ter sido, uma bela de uma loiraça, comigo no quarto, ao som de Chopin em frente da lareira e com uma bela garrafa de Château Briand. Para rematar, mas só depois do sexo, um Cohiba agraciado com uma leve massagem de Cognac Marnier ou até mesmo de Bushmills Black. Mas não, aqui andam estes vultos estúpidos de volta de mim, a saltar de espelho em espelho, como se estivessem numa missão quase impossível de morte ou de vida.
Não-eu, eu quero voltar! Juro emendar-me.
Nem consigo chorar, verter uma lágrima só que seja, nem consigo borrar-me de medo no meio deste «nada». Serei o único aqui que consegue pensar, formar ideias? Nada da vida é mais que simples interrogações, perguntas sem resposta.
Fui ouvido, estou de volta a uma realidade que já conheci, que já vivi, mas que de repente se me tornou estranha, acabei de experimentar o maior período de reflexão da minha vivência. A acalmia e o silêncio daquelas horas de cativeiro dentro de mim próprio deram lugar à azáfama diária das cores e dos sons, da Lua e do Sol, sinto-me alienígena no meu próprio chão. Talvez tudo isto me tenha feito bem e tenha limpo a minha falta de ser… humano.
De repente sinto que sei mais que muitos, mas também que a ignorância é um bem que deve ser preservado, ela dá lugar à aprendizagem e ao querer ser, à capacidade de reconhecer o valor do «não» e deste conseguir negar-se a si mesmo, saber concordar na negativa para espicaçar a dúvida e crescer. Sou de novo gente!
Toda a minha vida foi um coma social auto-induzido, ignorei o verdadeiro real e embarquei numa cruzada por valores mais altos que a própria compreensão, valores que outros advogam como certos.
Permiti que dividissem o Mundo em dois, a classe social em quatro, a família em milhares. Permiti que este Mundo se tornasse um manto de retalhos com diferenças de cores e ideais. A partir daí desenvolveram-se estigmas em volta daqueles que vivem com o seu olhar catatónico, no seu Mundo privado, de outros que não vêem, ouvem ou falam, cujo corpo se alimenta de síndromes diversos, a esses chamam-lhes diferentes.
Agora vejo que não existe gente diferente, mas sim especial, gente capaz de nos fazer sentir as limitações da vida, a sua pequenez, a nossa pequenez. Por isso fazemos constantes promessas – não passam de mentiras – para ajudar esses «aleijados», sempre com a consciência de que apenas nos estamos a ajudar a nós. Somos egoístas, consumistas egoístas. Consumimos o que de bom há nos que dizemos ajudar por oportunismo. Não somos nada e não o conseguimos negar, se o conseguirmos um dia alcançaremos o patamar mais elevado da evolução, mas ainda muito distante do que limitamos como perfeição, o objectivo inalcançável.
Durante muitos séculos conseguimos dividir-nos em «Senhor» e «escravo» e subdividir os segundos em aptos e inaptos, criámos regras a que chamámos leis e forçámo-nos a cumpri-las – embora nem sempre – criando castigos para outros que as não respeitassem ou que tentassem alterá-las, isso levou a pelejas entre seres iguais, ao desenvolvimento tecnológico da forma de matar, à doença baseada na loucura e no medo constante dos povos, que deveriam ter sido sempre um só.
Ninguém está a salvo da insanidade artificial, da incapacidade de dizer ou escrever «sim» – que não é mais que contra-negação ou dupla afirmação, pela lógica matemática que criámos e desenvolvemos –, quando se exige que se tal faça.
«Sim! Vamos acabar com esta loucura!»
«Sim! É o fim da guerra!»
A partir de hoje irei reaprender a chorar, a pensar, a ser humano. Não irei venerar nenhum Deus, apenas algumas palavras que considere serem reais. Como disse um dia o Dalai Lama, quando questionado sobre o que mais o surpreendia na humanidade: «O Homem porque sacrifica a saúde para fazer dinheiro, dinheiro que depois utiliza para recuperar a saúde. Porque vive tão ansioso com o futuro, que não aprecia o presente: não vivendo nenhum deles. Vive como se nunca fosse morrer e morre nunca tendo vivido.»
Todos os dias me olharei ao espelho, todos os meus dias dirão não ao não…
A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma