Contos : 

D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

 
Da série Doutras Noites


António e Luísa
E
Os gatos da rua parda


Miado número um

We can start a fire "Even if we're just dancin' in the dark"




A noite insinua-se na linha do horizonte, os gatos anunciam-na pela calada enquanto afiam os bigodes para mais uma noite de fado. As ruas esgotam-se das cores cambiantes do ocaso solar pintando os cantos de sombras. Os pombos arrulham ao som das guitarras que se afinam para mais uma conversa desgarrada. Os corpos cansados do rebuliço insano das horas que não passam anseiam a fechadura do descanso que, aberta aos tropeções se fecha para o tempo de outra noite.

Noite fechada com porta aberta para outras vidas. Vidas escondidas na penumbra do ser diurno, perscrutando cada segundo que as amarra à luz do dia, ansiando por se vangloriarem no salto sem glória que morre na entrada do ocaso catapultando-as para a luz da noite.

Luz fingida, perturbadora de cada passo, demovendo-os amiúde de seguir o seu trilho, atirando-os por atalhos sem saída. Arrastadas nesses passos vêm vidas atalhadas de angústias, de sentimentos mal sentidos ou por sentir, de desesperos aflitos desesperados por um pedaço de conforto que lhes cale os olhos molhados pela tortura de outras portas outrora abertas e agora fechadas. Ou de outras por abrir, que a algumas nem sequer se foi bater por medo, por vergonha, ou por coisa nenhuma! Há outras que permanecem entreabertas, somente à espera do último empurrão que cego, surdo e mudo, não encontra o caminho e esbarra na parede da dúvida que desavergonhada e na sua vil petulância, impede o ente de alinhar o seu ser.

Cruzada essa porta nocturnal e entrado na imensa sala da carência e da necessidade, que se transforma à medida do que se pede, buscam-se, numa dança de outras músicas, corpos incertos que de tão certos dos mesmos sentidos sem sentido se perfilam alinhados no seu desalinho.
Depois fazem par numa dança que, prendendo os movimentos à desilusão, à solidão e a outras "ãos", faz sombra às sombras da vida. As danças são muitas e de variados estilos, e há pares para todos os gostos e feitios: Baco e Afrodite, Mari e Juana, Henry and June and Jean and Nin.

Numa sombra parada espera a oferta, de um canto escondido avança a procura e ambas imploram uma dança sem dor. No final da breve dança o par deixa de o ser, a procura vai insinuar-se a outra carência e a oferta continua a oferecer-se a outras procuras que o queiram ser.

E no limiar desta noite estava António.

freitas.antero
 
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freitas.antero
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 04/04/2020 09:40  Atualizado: 04/04/2020 09:40
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 Re: D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da r...
Este “miado número um” é indiscutivelmente uma lufada de ar fresco.
Tem frases de rara beleza, e as ideias que parecem atropelarem-se desregradamente, envolvem-se feito sopa, ou diluem-se como um chá. A sensação complexa da leitura chega a ser física e sabe-me a passado, um passado rico e saudoso.
Aquela sensação maravilhosa de que os outros é que escrevem bem.
Um outro é neste texto, com tantos exemplos de prosa poética bem articulada, que não vale a pena destacar um, porque seria injusto para todos os outros.
Há textos (meus inclusive, como é óbvio) que não têm ponta por onde se lhe pegue (de tão fracos).
A este acontece isso, de tão forte.

Eu já só quero é saber
O que o António vai fazer.

Não conheço muito bem os teus textos, falha minha, mas por este aperitivo acho que vale a pena ler outros.
Faço um pedido especial: o senhor Antero não pode ficar tanto tempo sem aparecer. Apareça, preferencialmente todos os dias.

Favoritei.
Abraço