A UM METRO OU DOIS
Em tempos de Covid19, as pessoas se obrigam a mudar suas maneiras n'um processo quase de reeducação. Proibidos os abraços efusivos, os beijinhos fraternos e até os apertos de mãos firmes, civilidade se tornou algo sempre a um metro de distância. Quase d'um dia para o outro, a cada encontro humano, vem a dúvida: Como cumprimentar o outro?
As notícias que nos rodeiam são, de facto, catastróficas. Com 3.027 pacientes diagnosticados no Brasil e 77 mortos —— atualizado às 18h20 da tarde desta 5ª feira (26.mar.2020) pelo Ministério da Saúde —— e projecções que indicam milhares de contaminações nas próximas semanas, eventos e viagens planejados há meses são cancelados em todos para cantos ao passo que expedientes de trabalho e aulas passam a ser cumpridos no domicílio, à distância.
Sob o signo do medo, vivemos em hesitação. Visitar ou não os pais idosos? Implorar que eles deixem de ir à missa sob o argumento de que até o papa está gripado e, indisposto, ficou na cama?… Parece, no final das contas um péssimo bom conselho. Todos já estávamos excessivamente emparedados, seja pela falta de dinheiro da actual conjuntura; seja pela radicalização dos debates ideológicos… D'um modo ou de outro, já andávamos meio distantes antes do vírus tornar isso uma obrigação. Recolhidos ou não a nossas casas, as ruas estão vazias e o quotidiano foi amplamente esvaziado de encontros humanos. Por prevenção, estamos nos relacionando com cada vez menos pessoas, evitando transporte público e circulação desnecessária. Já há quem se preocupe com a saúde mental d’este regime solidário-mas-solitário que a pandemia exige. De facto, sem abraços e apertos de mão, temos vivido a um metro de distância uns dos outros.
Aliás, a pandemia de Covid19 declarada pela Organização Mundial de Saúde nos encontra —— nós, brasileiros —— n'um momento de extrema fragilidade: Em geral, estamos mais pobres e divididos do que há dois anos atrás. E, agora, o vírus chega em nosso quintal (palavras do ministro da saúde) subvertendo as posições à esquerda é à direita a ponto de as tornar irrelevantes. As trincheiras ideológicas escavadas são subitamente inundadas pela necessidade de isolamento físico. De modo significativo, tanto as manifestações marcadas por bolsonaristas para o dia 15/03 quanto àquelas promovidas por antibolsonaristas para 18/03 foram desautorizadas por seus organizadores evocando razões de saúde pública. As notícias mais recentes dão conta que nada mais nada menos que dezenas membros da comitiva do presidente em visita oficial aos Estados Unidos testaram positivo para o Covid19 ao regressarem. Bolsonaro, após afirmar que a pandemia era uma "fantasia" da imprensa, rendeu-se ao facto de que ele mesmo poderia estar doente e pronunciou-se contra aglomerações humanas, sobretudo aquelas convocadas por ele mesmo em favor de seu governo. Não obstante, participou das manifestações que desautorizou e se negou a mostrar o resultado de seu exame. Confusos, observamos as mais altas autoridades nacionais ora recomendarem o isolamento social; ora exigirem o retorno a normalidade. Não sabemos como proceder em meio a um estado de coisas que alguns chamam de “apocalítico” e outros de histerismo vazio...
—— “Fiquem em suas casas!” —— dizem as autoridades sanitárias, com certo alarde até —— ainda que não deixem pão em nossas portas… É preciso sair para trabalhar e estudar todos os dias evitando hábitos que antes faziam parte do quotidiano. Atravessamos um período de reclusão parcial em eterno questionamento se era preciso mesmo tratarmos uma simples gripe com tanto receio ou se, ao contrário, deveríamos nos enclausurarmos em quarentenas radicais sem compartilhar sequer copos e talheres com os demais membros da família. É muito difícil aceitar esse momento, mas todos sabemos que tão-logo as pessoas comecem a adoecer gravemente, o pânico instalado se encarregará do resto.
Ressalte-se que, diferente do que se vê em China, Itália, Irã e Coreia do Sul, as pessoas ainda não têm morrido em larga escala por aqui. Não falta quem duvide da importância do Covid19 citando dados da dengue ou do sarampo para reivindicar uma normalidade cada vez mais distante. Não importa o quanto se deseje minimizar o que estamos vivendo, a proximidade cada vez maior do vírus nos afasta cada vez mais de quem está perto. Afinal, ninguém quer trazer a virose para si ou para seus. Não é mesmo?
N'um tempo em que as mínimas coisas têm sido politizadas, aparece uma doença que não respeita as fronteiras das nações e muito menos as convicções pessoais. Lá e cá adoecem, sem distinção. Não obstante, a necessidade de conseguir dinheiro empurra assalariados com máscaras para as ruas. Quem puder realmente ficar em casa deverá se acostumar com a solidão, enquanto quem não pode viverá em constante vigilância para evitar o contágio.
Mesas são afastadas. Cadeiras, empurradas. Salas vazias, cheias de ausentes. Cumprimentos que ficam no ar. Gestos… Vigiando as mãos. Sem contacto.
Belo Horizonte - 27 03 2020
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.