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DILUVIANO

 
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DILUVIANO

Chovia forte desde a noite anterior. Era uma estação atípica, com pancadas dia sim; dia não: Encostas deslizavam, ruas inundavam… D'uma hora para outra, córregos viravam rios e rios viravam mares… Em toda a parte havia danos e destruição. Era difícil acreditar que os córregos raquíticos da cidade fossem tão subitamente capazes de se agigantar e levar tudo no caminho como se estava vendo. A contagem de mortos e desabrigados aumentava a cada dia e a chuva não parava, por mais que as pessoas implorassem aos céus que aquele tormento cessasse.

Mas os céus não se compadeciam do sofrimento humano generalizado. Diante de tanta desgraça, os mais religiosos enxergaram n'aquelas perdas a mão pesada de Deus. Sim, nossos numerosos pecados finalmente cobravam seu preço. Os ambientalista, à maneira d'eles, faziam eco aos crentes dizendo que nosso modo de vida era insustentável: Produzíamos montanhas de lixo e entupíamos os canais que escoavam as chuvas… Nada de novo, afinal, a expansão da metrópole sempre ocorreu d'aquele modo, a saber, ocupando os fundos de vale tão logo as cumeadas dos morros se adensassem de edificações e ruas: Primeiro o curso dos córregos era retificado e os brejos drenados. Depois, ruas meio baldias eram abertas nas margens que se convertiam em bota-foras de toda espécie de entulho e lixo, até que, n'um golpe de misericórdia, o córrego era canalizado e, não raro, coberto. No final, a cidade conquistava à natureza mais aquele território e se conformava como um tecido contínuo de concreto e asfalto a subir e descer as colinas do planalto no pé da serra.

Vontade de Deus ou não, o facto era que os céus não fechavam suas torneiras: - "Invernou, como se diz lá na roça…" - muito embora fosse pleno verão e o tempo bem quente. A chuva não parava nem para se poder consertar o que estragava. O povo, atarantado, só fazia olhar para o céu e esperar. Não havia muito o que fazer. Podia se esbravejar o quanto quisesse, mas a cidade tinha nas chuvas seu ponto fraco. Não era a primeira nem seria a última vez que se veria aquele espetáculo.

Não obstante, as pessoas não deixavam de se admirar com a fúria da natureza ao lhes tirar o pouco que tinham. Os mais ricos, obviamente, sofriam menos com aquilo tudo, seguros em suas casas nas alturas. 
Inobstante, competia aos mais pobres passar pela estação das chuvas com o máximo de paciência possível. Óbvio que nem todos conseguiam: Muitos se entregavam à revolta ou à depressão. Àquela altura, parecia-lhes claro que a vida não valia a pena. Era impossível falar em mérito quando alguns eram simplesmente atravessados pelo Fado. Nem o acaso nem Deus nos protege quando o céu escurece em pleno dia e as nuvens despencam feito cachoeira sobre a terra lamacenta. Sobrevive-se por incompetência dos elementos, não por argúcia humana em se abrigar d'eles! Em guerra com os humanos, a natureza começa nosso apocalipse sazonal.

Em todo caso, a Bíblia conta que houve Noé… Sim, um homem escolhido para fazer uma arca em terra enxuta para esperar a grande chuva e salvar os bichos consigo… - "O mundo já acabou assim antes, lá atrás!" - murmuram os crédulos enxergando n'aquilo um sinal dos tempos. Mesmo que não se veja sentido em Noé e sua epopeia de fé, a chuva continua enchendo os baixios e desmoronando as vertentes.

O mundo até pode estar acabando, mas não é por vontade divina.

Belo Horizonte - 05 02 2020


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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