ACERCA DAS DOUTRINAS
Toda doutrina é um arranjo de aspecto razoável que pretende desenvolver a partir de certas expressões fundamentais --também chamadas dogmas -- reflexões acerca dos problemas propostos pela experiência humana. Ao buscar respostas em concordância com os dogmas estabelecidos, o corpo doutrinal reafirma continuamente a validade d'estes mesmos dogmas, de modo a redundarem em soluções idealísticas. É na conversão d'estes ideais em realidades que muitas vezes consiste a noção de progresso. As coisas melhoram quando desejos experienciados como legítimos (não passar fome em nenhuma hipótese, ter acesso à terra ou trabalho assalariado e possuir liberdade para ir e vir, para ficar nos "desejos humanos" mais simples…) são solucionados pelas práticas desenvolvidas a partir dos ideais propostos por sistema doutrinal.
O que nos leva, humanamente, a duvidar das doutrinas é sua multiplicidade autolegitimadora. As doutrinas, como quase tudo na vida, são consolidadas em processos de tentativa-e-erro: Ideias aparentemente sensatas são testadas pelas circunstâncias. Os séculos se encarregam em decantar lentamente as graves posições assumidas para que tudo aquilo que pese se acumule bem no fundo do profundo lago dos costumes e, sobretudo, para que na superfície as águas se apresentem cristalinas em face dos doutrinados e estes, ao olharem para elas, vejam senão o espelho de suas certezas pessoais. Evidente que a limpidez d'este espelho d'água depende muito da capacidade de autosugestão de quem olha, vendo pureza onde há turbidez ou senão esperando, pacientemente, que a poeira dos conflitos sedimente e deixe de ser visível depositada lá no fundo. Ali, nas profundidades abissais, onde nem a luz nem o olhar humano chegam, o mistério é respeitosamente admitido como parte suplementar do corpo da doutrina. Ou em palavras mais poéticas, onde o arsenal doutrinário parece se esgotar, ali o apologeta se cala e o místico contempla! Tudo aquilo que o doutor na doutrina se "esquece" ou se nega a responder, passa a ser admitido como mistério divino, afinal, é vontade da Divindade e limitação do Homem conhecer todas as coisas! Pode se afirmar, inclusive, que o mistério se impõe não por má vontade do Criador em se revelar, mas por incapacidade humana (criado limitado por esse mesmo Criador) em alcançar a vastidão do pensamento divino. Aceitando-se incapaz, o ser humano aceita também sua ignorância sobre o Universo que o cerca, imerso em beatitude resignada, admite n'aquilo que não compreende parte do plano divino. N'outras palavras, a doutrina deve responder tudo, mas mesmo quando não responde de modo minimamente satisfatório, encontra no mistério sobrenatural um vazio cômodo onde tudo que não tem resposta pode ser guardado à espera da revelação divina.
Isso é, de facto, maravilhoso n'um corpo doutrinal: Oferecer respostas para toda e qualquer questão. Mesmo quando uma doutrina silencia acerca do que não era sequer problematizado quando foi formatada, seus valorosos guardiães se encarregam de produzir -- por analogia, por dialética ou simplesmente por autoridade -- as verdades que darão ao fiel a frase feita que legitime sua pertinência mesmo em tempos de crise. A doutrina oferece uma explicação, mas principalmente um vir-a-ser. Esse projeto de ser humano que as doutrinas nos oferecem explicam porque ainda não resolveram nossos problemas. Afinal, não basta a uma doutrina ser hegemônica para melhorar o mundo; é preciso que seja absoluta, controlando toda a acção humana até que possa manifestar sua perfeição… Isso se verifica historicamente no formidável quadro de guerras religiosas que a Humanidade apresenta, ou seja, a vaga esperança de que quando todos professarem a mesma fé e repetirem o mesmo credo, enfim, haverá harmonia nas relações humanas. Guerras por uma paz sempre adiada…
O grande problema das doutrinas acaba sendo justamente esse, ou seja, afirmar serem capazes de consertar todos os problemas humanos quando e se suas normas forem obedecidas por todos para, d'este modo, uniformizarem os olhares sobre os problemas até as respostas decoradas e repetidas por todos se tornem a Verdade. Todo homem e mulher, portanto, é convidado a mudar de vida quando se depara com uma doutrina. Não importa quem seja ou que faça: Tem-de melhorar!
Esse novo ser gerado a partir da compreensão e seguimento da doutrina passa a se distinguir dos demais que ainda permanecem nas trevas da ignorância. Cada vez mais confiante nas certezas da doutrina que escolheu seguir, esse fiel promove em sua própria existência um rosto e uma conduta que permite a qualquer doutrina a consolidação do seu grande objetivo inicial, a saber, tornar-se uma Moral. Com efeito, mais do que se contrapôr às demais doutrinas no afã de superá-las com argumentos, toda doutrina se esmera em apresentar bons costumes. Em última análise, pouco importa se seus dogmas são defensáveis pela lógica, mas antes lhe interessa apresentar as linhas-guias que promovem aos seus seguidores um projeto de vida. Os doutrinadores pretendem menos estarem certos do que influenciarem as multidões. A Verdade pode ser qualquer uma, desde que as pessoas adiram a ela. Ao contrário dos seguidores -- que devem ser desaconselhados a ter opiniões em desconformidade com a doutrina -- os doutrinadores têm consciência dos pontos cegos nas verdades de sua doutrina. Evitá-los, é questão de bom senso. Em sendo o divino perfeito, imperfeito é o olhar humano sobre ele.
E assim as doutrinas se perpetuaram ao longo da História… O que deveria realmente nos incomodar é porque, em pleno século XXI, ainda termos necessidade de aderirmos a doutrinas ou ideologias. Parece incompatível com a liberdade humana em nosso tempo ser forçado a aderir a qualquer pacote de opiniões e ideais que um corpo sistemático venha a nos oferecer. Até se pode compreender a comodidade que essa espécie de "terceirização" do pensamento que a adesão a doutrinas nos permite possa permitir. Não obstante, é a esquizofrenia de pensar com a própria cabeça e ao mesmo tempo pensa conforme a ortodoxia que se expressa na ideia orwelliana de duplipensar.
A contraposição entre Razão e Fé que atravessou a modernidade parece não ser mais necessária uma vez que, em sociedades globalizadas, nenhuma doutrina possa mais se arvorar superior às demais. A Verdade relativizada d'uma doutrina se tornou o que sempre foi, isto é, apenas opiniões sistematizadas. Se fôssemos de facto livres-pensadores, não ficaríamos nos mesmos distorcendo nosso pensamento para encaixá-los n'esse ou n'aquele sistema.
Evidente que o pensamento contemporâneo pode e deve ser apreciado pela sociedade que após julga se é relevante ou não para suas problemáticas. Todavia, jamais poderá se submeter exclusividade ao senso comum ou ao inconsciente colectivo. É forçoso apresentar ideias e pôr em crise ideários mesmo quando entram em choque com a sensibilidade das pessoas. Qualquer um que pretenda pensar o mundo em que vivemos deve fazê-lo sem os limites estreitos d'uma doutrina. Apenas estabelecida essa condição, pode se falar em livre pensamento.
Ou senão, entre apologéticas e diatribes, assistiremos apenas fogueiras de vaidades, não debates intelectuais honestos.
Betim - 22 12 2019
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.