A BUSCA DA FELICIDADE
A primeira consequência de regimes de poder pautados também pelas questões do indivíduo em contraposição ao colectivo é a afirmação do direito à busca da felicidade. Não por acaso, o tema surge na Constituição Estado-Unidense:
"We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable rights, that among these are life, liberty, and the pursuit of happiness."
A busca da felicidade seria, portanto, um dos motores da existência, ou melhor, o próprio sentido da vida. Essa ideia quase inocente promoveu uma verdadeira revolução dos costumes tendo como pano de fundo a expansão global do Capitalismo Industrial a partir da queda do Antigo Regime. É como se os constituintes afirmassem que o cidadão é livre porque pode desejar coisas alheias ao bem comum ou aos interesses do Estado de Direito. Embora "autoevidente", essa ideia se revelou o estopim para que a solidez das tradições fosse sublimada pela experimentação pessoal.
Afinal, o que diz a tradição que herdamos de nossos pais: "É preciso constituir família e perpetuar o sangue para criar um nicho de relações autossuficiente, visto que os laços de sangue são os mais fortes e a existência humana colocada sempre em risco face um mundo hostil e imprevisível.". Escutei isso desde menino… Família, família e família: a célula da sociedade! O problema d'esse "colchão existencial" oferecido pela estrutura familiar é exactamente a renúncia à busca da felicidade. Com efeito, quem busca a felicidade, mais cedo ou mais tarde, vai ter de se afirmar em vista dos próprios interesses em detrimento dos costumes. Isso tem consequências lamentáveis? Evidente que sim.
Entretanto, abrir mão da própria vontade para fazer o que é melhor para o grupo parece ser algo posto em crise com cada vez mais frequência.
Isso revelou, por trás da simpática noção de proteção em torno de famílias e clãs a terrível ideia de patriarcado, isto é, a tirania do pai. Oras, se elevados à categoria de cidadãos livres e dotados de direitos fundamentais explicitados sobremaneira pela constitucional busca da felicidade, como se submeter na esfera familiar àquilo que não se admite mais na esfera estatal? N'outras palavras, como obedecer um pai acima do bem do mal a ser amado e temido se mesmo o chefe da nação deve fazer por merecer sua autoridade?…
O binômino Liberty e Happiness é muito interessante para entender esse novo homem que surge com o fim do Antigo Regime. De certa maneira, nem o senhor de escravos das colônias americanas era livre, visto que seu privilégio era antes uma concessão perversa da Realeza do que um direito baseado n'uma "verdade autoevidente". Tudo poderia mudar com uma canetada… Verdades que tem profundo apelo n'alma humana, por outro lado, resistem a canetadas e cassetetes…
Isso posto, Liberdade não pode ser apenas o direito de ter propriedades, sobretudo em prejuízo das liberdades d'outras pessoas. Ser livre, n'uma perspectiva pós-Antigo Regime, é não ser obrigado a fazer senão o que for previsto nas normas legais (estas, inclusive, criadas mediante debate e votação de parlamentos, não da mente iluminada d'um governante legislador-e-juiz). Ao contrário, só é possível ser livre quando se faz o que quer, limitando o bem comum àquilo que realmente for essencial para a manutenção da Ordem Social. Mas o mais importante: Só se faz o que quer quando o querer é amplo e irrestrito! As moralidades tradicionais podem ser descritas como um lento processo de sedimentação de tentativas-e-erros que demonstraram a validade de certas escolhas em detrimento de outras. Essa piscina, todavia, foi agitada pelo vórtice do desejo e ninguém mais consegue tampar o ralo que faz a água correr...
Mais do que o simples preconceito, as tradições expressam um direcionamento para as decisões pessoais que foram exaustivamente corroboradas pelas histórias familiares. Se hoje causa espécie que maridos cobiçados fossem literalmente comprados pelo dote de noivas ainda adolescentes, é porque esse tipo de raciocínio que coloca a posição social da família em detrimento da vontade pessoal da noiva ofende justamente à ideia de busca da felicidade como prerrogativa do indivíduo. Por mais argumentos que se possam colocar para a vantagem d'uma mulher e sua família quando esta se casa com alguém considerado extraordinário por seus pais, a desconsideração pela sua vontade pessoal é simplesmente um acto despótico. N'esse sentido, é sobretudo o querer que revela a liberdade.
Isso talvez revele a grande perversidade d'aqueles que propõem a manipular quereres, pois, mesmo um escravo pode não sentir falta da liberdade se faz o que quer!… Quando os limites da consciência humana são estreitos, querer pode ser equivalente a necessitar. Isso nos faz pleitear a ideia de que somente pode ser considerado livre aquele que tem suas necessidades básicas satisfeitas por um sistema de produção de riquezas capaz de equilibrar a Ordem Social. Repare-se que falamos em consciência humana, não em mera satisfação fisiológica. Uma pessoa que não tem consciência de sua liberdade de desejar algo para si, ainda que em conflito com os interesses da família, não pode dizer que busca a felicidade, sim que incorpora os valores tradicionais da família a tal nível que sua liberdade mesma se tornou restrita. Isto posto, vale a pena frisar que buscar a felicidade é uma coisa; ser feliz, outra. Buscar a felicidade tem a ver com a profunda ansiedade do ser humano diante de sua breve existência. Ao se propor objetivos e indicar direções para sua trajetória ao longo da vida, as pessoas compreendem que o tempo não está a favor d'elas, ao contrário. É preciso correr para que os desejos se tornem experiências.
Quanto a ser feliz, isso é quase aleatório quando não autoinduzido. Tomando mais uma vez o exemplo do escravo colonial, quando esse tinha a oportunidade de brincar folguedos é possível que se sentisse feliz, sem que, todavia, pudesse buscar a felicidade. Aquele momento de descontração era quase um acto de magnificência do seu senhor, não raro movido por piedade cristã… Ser feliz, portanto, não é ser livre e tampouco todo aquele que é livre é feliz. Ser livre, aparentemente, se revela inclusive na possibilidade de escolher o que nos é nefasto; sim, algo que nos destrói. A liberdade manifesta pela busca da felicidade é, por via de regra, um convite à experimentação e ao risco. E quando não se joga um jogo de cartas marcadas, perder faz parte.
Sempre que me debruço, contudo, sobre algum movimento reacionário de retorno às tradições, sobretudo as religiosas e familiares, eu me deparo com um mal disfarçado "desejo de certezas". O que as pessoas afirmam quando decidem não decidirem por si, mas sim se submeterem às fórmulas tradicionais para conduzir suas vidas (que são todas, com a devida vênia, expressões do Patriarcado) é que são mais felizes fazendo o que se espera d'elas, ao passo que não faltam exemplos de conhecidos que fizeram o que queriam e deram co'os burros n'água… A meu ver, podem até ser infelizes, mas buscaram a felicidade e são livres. Aquel'outros, por outro lado, compraram sua felicidade mediante inconsciência e autoengano. E isso, para mim, é exactamente não ser livre.
Ou como disse o poetinha: "É melhor viver do que ser feliz…"
Belo Horizonte - 13 12 2019
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.