Poemas : 

o que demonstro sou

 
Não vão em cantigas,
nem em meras aparências,
no hábito do santo.
O que, em vão, procuro é
a fé nas ciências, no mais obscuro
canto.
Vingo
e sem pingo de pudor vou ao mais fundo
ardor
guerrear mais as Fúrias
a traição de ganhar e do perder.
Mato e morro mais um pouco.
Deserto e torre.
É meu
o perfume a pavor e
socorro
de esquecimentos.
Entre ventos e granizos,
entre instantes e eras
imortalizo o ódio a primaveras, outonos, invernos e verões.
D'arma em punho ataco.
Defendo
o herói e o fraco.
Defendo-os da minha ira incontida
em raiva,
com uma sede fétida de justiça
amarga, pobre e podre, azeda,
inglória...
Eis-me apenas a estória dum Homem
pronto para apagar na mesma moeda
o que me foi dado.
Com juros e requintes..
Sem escolha
que esconda
a descida aos meus medos,
a ganância de mais uma vontade
debaixo da minha pegada,
impressão digital sob a qual
todos se curvam.
O que demonstro sou,
à beira do cataclismo e do abismo.
Teclado cheio de carne, teclas e letras prestes ao grito,
num alerta sem cores,
sem dó, sem absolvição.
No meio de pó.
O chão dita-me a incúria, a blasfémia, o urro.
Empurro mais um momento para o amanhã,
persevero
entre os sonhos acres de fúria,
faltos de fé.
Corto à faca mais um ambiente
num silêncio
com uma verdade falsa de pudores,
com uma mentira.
Inconveniente.
Doente das mãos aos olhos e suas cores.
Multiplico o bem pelas cidades,
subtraio e adiciono dias ao mesmo sítio.
Traio amiúde os meus quereres e sou o Homem da guilhotina de outra Maria Antonieta.
Nunca basto!
A vida ensina-me todos os dias
o que vou esquecendo
com o tempo.

O que de monstro
sou...


Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

 
Autor
Rogério Beça
 
Texto
Data
Leituras
820
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
13 pontos
1
2
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/10/2019 01:19  Atualizado: 27/10/2019 01:19
 Re: o que demonstro sou
Tenho a teoria, muito provavelmente errada, de que a poesia faz muito mal a nossa sociabilidade. Torna nos inseguros, sempre com necessidade de nos afirmarmos, por tudo e por nada...

Isto para dizer que, pensando desta forma, ridícula ou não, gostei

😊