Poemas : 

ampulheta

 
o por-do-sol é sempre a minha espera
sentada na areia da ampulheta que me engole
chamo-te e não vens.
será do tempo que não para na estação dos sonhos.

eu, entre a realidade e o fim
quando acordada
vou tomando alguns remédios, enganos e placebos
e tu, entre a vida e a morte escondes-te no sangue dos números
que não perdoam.

abracei-te com as mãos que em ti perdi.
deserdaste a minha noite, a minha carne solitária, parda.

tu
que em tanto tempo, nunca tens tempo,
para ser livre e perder a alma na minha alma.

agora, de novo, coisa velha,
já são seis da manhã, mais uma vez o tempo de ruir.

 
Autor
RoqueSilveira
 
Texto
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/07/2019 09:01  Atualizado: 06/07/2019 09:01
 Re: ampulheta
o importante, creio, é ter aquele restinho de força motriz
a nos impulsionar a cada amanhecer para criarmos uma doce ilusão de que um novo dia nos trará as respostas que tanto queremos...

abraço do Rehgge.


Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 06/07/2019 23:27  Atualizado: 06/07/2019 23:27
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
Localidade: Penafiel
Mensagens: 1801
 Re: ampulheta
Ficcionada ou não, a realidade do poema coloca-me perante a situação limite, que só não é desastrosa porque, de qualquer modo é ficção o que ainda se diz.
Sem embargo, um grande poema trágico.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 29/07/2019 08:10  Atualizado: 29/07/2019 17:00
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 2123
 Re: ampulheta
Um enorme poema, segundo a minha opinião (convém sempre frisar isso e quase sempre me esqueço).

O sujeito poético surge na primeira pessoa e há uma segunda personagem presente em cada estrofe, em cada metáfora designativa de tempo, em cada imagem rica e muito bem imaginada.
Esse Tu que nos completa, ou assim achamos, universalmente (esta necessidade absurda de sermos completos é terrível), parece o mote para o poema.

Sendo o começo no começo, o teu primeiro verso apresenta à partida uma primeira localização no tempo muito precisa e ao mesmo tempo vaga. Não é na aurora. Não é ao meio-dia. Mas arrasta-se dum modo diferente dum cronometrado 19h47mn. Além de ser variável segundo a época do ano, no inverno é por volta das 17h, no verão lá prás 21h. Mas, neste caso, o por-do-sol dá a essa localização um arrastamento, uma certa profundidade. O sol vai-se pondo até que que se põe.
Como metáfora mais lata, o fim do sol, é o fim da luz, do conhecimento, do espectro completamente visível, da vida, there´s some darkness in the dark.

Se este verso ficou meio por comentar, entro no meu preferido.
Acho-o, imageticamente, lindo.
O tempo, antes dos relógios atómicos, foi medido (a partir do momento em que o animal Homem teve a sua revolução cognitiva) de vários modos. Todos já ouvimos falar dos relógios solares; duma forma mais ou menos correcta espetámos um pauzinho na terra e vimos a sombra a mudar de lugar. Vimos em filmes ou em museus ampulhetas de areia (também há de água). O objecto pelo qual os suiços são conhecidos é coisa de meros 2 ou 3 séculos.
“… sentada na areia da ampulheta que me engole…”
espacialmente acabamos numa praia, com o sol a pôr-se no mar, mas porque somos engolidos há uma violência que se adivinha.
Ao não vir, o segundo elemento protagonista direcciona o segundo mote, a ausência.
O último verso da primeira estrofe aproxima-se um pouco mais do lugar comum, mas fico sempre com a ideia que ele parece mais uma pergunta do que uma afirmação.
A dúvida é um bom indicador. Mas a ser uma pergunta, o mais cruel é que ele encerra também a resposta. Afinal o tempo não para.

A segunda estrofe tem seis versos que se dividem em Eu nos primeiros 3 e em Tu nos 3 últimos, e embora possamos achar paralelismos, há ideias que que se vão solidificando nesta espécie de desenvolvimento.
A ilusão perene do sujeito poético ao admitir ir “tomando remédios, enganos e placebos”, ilusão essa que alimenta, ou pelo menos remedia.
Enganos porque amiúde enganamo-nos a nós próprios com as ilusões que criamos e recriamos dos outros, que constatamos, com ajuda ou sozinhos que são irreais. Como os placebos que não possuem princípio activo farmacológico, mas que psicologicamente actuam, como se tivessem.
O “sangue dos números” é uma metáfora imensa, mas não estou certo do quê. Mas estes números que muitos conseguem, podem ser de magia, de circo, de teatro, de contabilidade, podem ser esconderijos bem interessantes, ou mais desculpas esfarrapadas que encaixam de sobremaneira nos enganos que o sujeito poético toma.
“…entre a vida e a morte…” estamos todos.
Assim como “…entre a realidade e o fim…”. Mas estes são os termos que unem ambas as personagens, no fundo, banais seres vivos.
Determinam a complexidade das relações. As zonas cinzentas em que caímos e para onde muitas vezes nos atiramos.

“…deserdaste a minha noite…” que belo…
Perder as próprias mãos é estar nas mãos doutrem, e essa é a constatação mais óbvia, mais literal, num poema tão pouco literal.

Após mais uma insónia, o sujeito poético volta a ser o seu velho seu, essa coisa que sabemos ao espelho, que tem de ir com o sol cumprir rotinas, ou ruir, como tão bem me soube, mesmo no fim desta leitura…

Obrigado.

Ps. Gosto de ver activa, e com muitos poemas recentes de enorme qualidade, no nosso site.