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LOGOMAQUIA

 
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LOGOMAQUIA

"A vida (...) é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.” William Shakespeare in Macbeth

-- Reage! Ó tu que repousas junto ao Lete
Indiferente já de teu renome!...
Responde ao meu clarim o teu trompete,
Chamando cães de guerra pelo nome.
Perfila os pelotões de sete em sete
E recarrega a carga antes que os dome
Cada ginete meu d'espada em riste
A varrer o horror teu de quanto existe!

-- Não te respondo só porque tu queres...
Eu te abro campo para que ora avances!
Jamais coloco hussardo contra alferes,
Tampouco luto sem maiores chances.
Vem tu ao meu encalço, se puderes,
Ou senão me acompanha a novos lances:
Onde o meu bem começa o teu termina
E lá te alcançará a só ruína...

Quem acaso os ouvisse não supunha
Que dois doutos e sim dois estrategos.
Tendo tão-só o céu por testemunha
Em pelejar por vãos desassossegos:
Íntimos inimigos, pela alcunha
Se xingam feito cegos guiando cegos
N'algum debate estúpido à distância,
No qual não há verdade, apenas ânsia.

Sim, buscando vencer a qualquer custo,
Trocavam argumentos inflamados,
Arrastando ao redor, já não sem susto,
Infames multidões de embasbacados.
Um, sonhando-se César em seu busto
Avança, pena em punho, pelos prados!
Ou senão pelas resmas das missivas,
Que envia para as mentes mais altivas.

O outro confraterniza em conferências,
Tentando por afeto ou simpatia
Angariar seguidores nas pendências,
Que promove contrário à picardia
Do desafeto em suas insolências.
A ambos vendo faltar sabedoria,
Seus pares já não vêm senão pôr lenha,
Grifando a cada qual cada resenha.

Mas no afã de destruir reputações,
Que, de resto, se mostram sem limite,
Deixam menos razoáveis as razões
E se buscam quanto ao outro mais irrite
Até que as mais mesquinhas agressões
Explodissem em pura dinamite.
Não trocam mais ideias; trocam ofensas,
Perpetuando as mais cruas desavenças.

Passam os anos entre escaramuças...
N'uma provocação quase patética,
Fazem servir alheias carapuças.
Distorcendo-se os factos sem outra ética,
Senão as que eles têm nas próprias fuças
Tomadas ad hoc como se proféticas...
Ao fim, estão tão longe da verdade,
Que só restou aos dois a insanidade.

Um a um se afastam todos os amigos:
Primeiro os mais sensatos. E depois
Mesmo os bajuladores mais antigos
Deixam àquela guerra absurda, pois,
Seguem a disputar, arqui-inimigos,
Do bate papo ao bate boca os dois...
Não permitindo apenas, bem ou mal,
Que ao debate o outro dê ponto final.

Já não têm argumentos, são só xingos
Trocados sem plateia ou testemunha,
Que lhes ocupando o ócio dos domingos
Interminável já se lhes supunha.
Riem -- longe o bastante dos respingos
Dos perdigotos soltos de quem grunha --
Alguns observadores eventuais:
Guerra já não de ideias, sim de ideais.

Em guerras assim não há vencedor.
Apenas pela morte e o esquecimento
Silenciam-se as vozes d'esse horror
Resta-nos sobretudo o sentimento
De que o conhecimento é sem valor
Quando usado por vão temperamento,
Pretendendo humilhar ou diminuir
E sem jamais cuidar do que há-de vir.

Fique como advertência aos novos sábios
Quão mísero um debate do intelecto...
Apenas têm mentiras em seus lábios
Repetindo as verdades de seu secto
Ou senão a encher grossos alfarrábios
Com vilanias dignas d'um insecto.
Mais sábio às vezes quedar mudo
Que com todos fingir que sabe tudo.

Contagem - 20 02 2019


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
Autor
RicardoC
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