AMOR ESTÁ MORTO
"Como? O homem é apenas um erro de Deus? Ou Deus apenas um erro do homem?" - Friedrich Nietzsche. in "Crepúsculo dos Deuses - ou como filosofar com um martelo"
Souberam-me que Amor estava morto
Após ter se afogado em águas frias.
Ao largo, as setas do ávido desporto
- Que tanto atormentaram fidalguias!… -
Deixadas sobre a relva ao desconforto
De quem testemunhou estripulias
D'aquele deus alado e tão menino
Que no Lete¹ foi ter com seu destino.
Morto, Amor afinal desaparece
D'este mundo de insana variedade,
Onde por tantas coisas se padece
À custa d'encontrar felicidade.
Se não ouve de amantes mais a prece,
Tampouco aos corações traz amizade.
Este, que tantos peitos malferira,
Como o último dos deuses se retira.
Multidões vêm seguir o seu cortejo,
Carregando-lhe o esquife diminuto.
Vazio embora, pois, como gracejo
Diziam enterrar "àquele puto!"²
A dessacralizar todo o desejo
Para, livres, gozarem em seu luto.
E assim, por relações sem sentimentos,
Haver das sensações breves momentos.
Jactam-se: - "Ele está morto! Finalmente,
Não nos enganará com mais promessas…
Seja-nos, d'oravante e tão-somente,
Qualquer encontro humano feito às pressas!
Face à ocasião, tão logo se apresente.
E não juntar pessoas tão avessas
Na fantasia extrema de se ver
Só do outro o que melhor lhe parecer."
- Vorazes e impetuosos igual leões,
Evocam dos prazeres quanto é lindo,
Alçados à fogueira das paixões.
Visto o tempo d'Amor agora findo,
Fazem romper os seus áureos grilhões
Que pelos anelares reluzindo
Apenas de renúncia e sofrimento
Os tinham ao rigor do sentimento.
O infante deus alado, todavia,
Permanece oculto em meio às algas…
Temido pelos homens noite e dia;
Odiado por plebeias e fidalgas!
Jaz quem na colectiva fantasia
Passava-lhes as lágrimas nas salgas
Para que mais amaras e salgadas
Vertessem pelas faces enrugadas.
Ninguém soube o motivo… Muito embora
Não faltassem sedentos por vinganças,
Cuja extremada fala 'inda apavora,
Tão cheia de vazias esperanças…
Sabedor das angústias mundo afora
Tidas entre saudades e lembranças
Decide enfim deixar à própria sorte
Os homens que clamavam sua morte.
Ele - filho de deuses presumido -
Sobrevivera à morte de seus pares:
Com efeito, um após outro esquecido,
Deixaram todos todos os lugares
Descendo desde o Olimpo para o Olvido!
Enquanto o deus cristão em seus altares
Logrou os sublimar por dois milênios
Para o louvor de místicos e gênios.
Sem embargo, nem mesmo o deus cristão
Mal mudando d'Amor o heleno nome
Não fez - de Eros para Ágape … - senão
Procurar lhes conter a humana fome
De saciar no outro enfim sua paixão
Que inapelavelmente lhes consome.
A fim-de que os desejos incontidos
Deixassem tanto a mente que os sentidos.
Por séculos, angélico e assexuado,
Permanecia ele Ágape por Deus.
De modo singular sendo evocado
Nos vivas dos sagrados himeneus.
Porquanto suspiroso, comportado
E, sobretudo, entregue aos chistes seus
Fez que se suportassem maus casais,
Mesmo que nada bom houvesse mais…
Passado já seu tempo, mesmo o Verbo
Desencarna entre as névoas pré-modernas.
Quando, secularizado e mesmo acerbo,
O mundo desdenhou luzes eternas
E despertou ainda mais soberbo
Tendo as glórias da Ciência por lanternas:
Fez, alçando o saber pelo Sidéreo,
Cada vez menor Deus e seu mistério.
Ao homem e à mulher contemporâneos,
Restara ainda Amor, a última crença:
Uma fé de que, embora momentâneos,
Os prazeres obtêm por recompensa
A ligação feliz dos espontâneos
Mesmo nos infortúnios e na doença.
Permitindo uma boa convivência
Pelo menos ao longo da existência.
No entanto, como todos os ideais,
Também Amor cai face à realidade…
N'um autoengano já grande demais,
Incapaz de esconder-se na inverdade
De que dois juntos formem algo mais,
Malgrado se perdendo a identidade!
Pouco a pouco percebem que no ardor
Se possa mais amar sem mais amor.
Era a hora de morrer-nos, afinal,
Não poderia o Amor haver n'um mundo
Onde todos só se usam, bem ou mal:
- "Já basta das mentiras do profundo
E, inobstante, antiquado madrigal!
Saiba-se todo humano enfim imundo,
Ao invés de iludir-se 'inda romântico
Pelos versos caducos d'algum cântico."
- Triste e esquecido, o deus que se desvenda
Vê uma humanidade que lhe odeia…
Atira fora as setas da contenda
E a grinalda de flores que o rodeia.
Parte as asas e as deixa pela senda,
Descendo até as águas que ele anseia
Capazes de ocultar sua presença,
Como deus que de si perdera a crença.
Cuidando em lhe seguir o triste rastro
E atestar sua morte junto ao rio,
Em busca do lugar encontro-lhe o astro
A precisar de Amor seu desvario:
Conforme Zaratustra³, o bom Zoroastro,
Com Deus estando morto, já tardio
Amor sobrevivera entre os modernos
Apenas a fazer na terra infernos!…
Lá, achando arco e aljava pelo chão,
Ergui-os como ex-votos; como herança…
E ao ver da liberdade a solidão
O preço a se pagar, joguei-lhe a aliança:
- "Agora eu me liberte da ilusão
Ou permaneça ingênuo como criança…" -
Sob as águas do Lete, depois d'isto,
O grande deus Amor não mais foi visto.
Belo Horizonte - 13 02 2019
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¹- O rio Lete (do grego Λήθη Lếthê, "esquecimento" ou "ocultação") é um rio do Hades onde quem bebesse de suas águas esquecia-se das vidas passadas. Logo, o Lete passou a simbolizar o esquecimento. (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lete)
²- Putto (do latim putus ou do italiano puttus, menino)[1] é um termo que, no campo das artes, se refere a pinturas ou esculturas de um menino nu, geralmente gordinho e representado frequentemente com asas. Derivado da figura do Cupido jovem, simboliza o amor e pureza. Usado também no plural: "putti".[2] (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Putto)
³- Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (em alemão: Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen) é um livro escrito entre 1883 e 1885 pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que influenciou significativamente o mundo moderno. (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra )