PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 18
Clodoaldo era um ex-policial militar que havia se notabilizado após dez anos de serviço na ROTA - Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, isto é, o afamado grupamento de elite da polícia paulista. Era alto, moreno, muito forte e bem apessoado, enfim, aquile tipo que se convencionou chamar de "um guarda-roupas". Sua notória actuação contra criminosos nas favelas de Diadema lhe rendera tanto medalhas de mérito quanto processos disciplinares, dada a truculência de suas acções. Frio, atirava para matar, deixando estatísticas incômodas e cenas de crime inexplicáveis para seus superiores abafarem. Todavia, denunciado como matador d'um esquadrão da morte, tivera o caso encerrado após o sumiço de algumas testemunhas levar ao silêncio das demais. No fim teve de sair da ROTA e procurar novas oportunidades, tendo se tornado segurança da igreja há cerca de cinco anos. Obteve a confiança do Pr. Carlos Vinícius que, crescendo em Guarulhos, não tinha qualquer solidariedade pela bandidagem. A pastora, porém, evitava sua companhia.
Viera a Uganda junto com Carlos Vinícius e se tornara seu colaborador mais próximo. Fora inclusive ele quem escolhera os imóveis que a igreja acabou alugando para a missão e os mobiliou enquanto o pastor, ora em Kampala; ora em Juba, credenciava a missão humanitária para actuar em solo ugandês e sul-sudanês. Comandava um grupo de mais quatro seguranças, todos ex-policiais paulistas como ele, que se revezavam na segurança pessoal do casal de pastores e no transporte de valores da igreja. Viu malas e malas de dinheiro vivo virando dólares e saindo do país sem qualquer controle em aviões fretados. A missão em Uganda, no final das contas, era parte d'um grande esquema para evasão de divisas. Parte do dinheiro arrecadado com as doações e dízimos da igreja no Brasil jamais apareceria em qualquer balancete fiscal. Simplesmente evaporava nas mãos de doleiros, convertendo-se em moeda estado-unidense. As doações oficiais dos fundos de igrejas europeias e brasileiras compunham a parte oficial da contabilidade da missão humanitária, mas eram as seguidas viagens de Carlos Vinícius em jatinhos, justificadas pela missão, que lhe permitiam sair com os dólares do país. Na África, o dinheiro era enviado para contas de off-shores em paraísos fiscais ou convertido em euros e depositando na Suíça para resgate em toda Europa. Era para lá que Carlos Vinícius iria depois que a pastora chegasse com os missionários e desse início às actividades do posto humanitário... O rompimento com Júlia, contudo, fez com que mudasse de planos. Era muito dinheiro em jogo e precisava sanar aquela ponta solta que aparecera.
Haviam passado duas semanas desde a festa de boas-vindas aos missionários e refugiados e tudo transcorria bem. Carlos Vinícius suportava a frieza de Júlia da melhor forma possível enquanto ela se entregava ao trabalho humanitário. Percebendo que havia muitos ugandenses sem ocupação em Moyo, decidira realizar o máximo de benfeitorias possível enquanto Carlos Vinícius estivesse por lá, franqueando o acesso àquelas despesas excepcionais. Contratara homens para trabalhar a dia na pintura e reparos emergenciais d'aqueles imóveis alugados. Contente com o resultado, mandou que capinassem o vergel dos fundos do terreno do conjunto de edificações e fizessem uma horta para que pudessem enriquecer as refeições que serviam aos refugiados. Curiosamente, após o primeiro dia de capina, reparou que os trabalhadores deixavam arbustos aqui e ali, contrariando o que combinara. Chamou um dos homens e perguntou o porquê d'aquilo. Ele respondeu que aqueles arbustos eram plantas medicinais. Era costume não capinar aquelas ervas quando as encontravam. Júlia se interessou pelas propriedades das plantas e o homem lhe explicou com satisfação como e quando colhê-las, bem como o processamento para que pudessem ser tomadas. Decidira aproveitar aquele costume para oferecer também fitoterápicos no atendimento médico do posto humanitário. Enquanto isso, Tereza se ocupava com a papelada administrativa e fazia o registro fotográfico do dia a dia da missão. As duas se viam muito, mas nunca ficavam a sós. Júlia evitava ficar sozinha com Carlos Vinícius que seguidamente insistia para que recuasse de sua resolução em se separar. Irredutível, Júlia implorava para que a deixasse em paz.
Com a rotina do posto humanitário seguindo o programado, Júlia decidiu fazer uma viagem de reconhecimento em Kajo Keji. Acertou com patrulhas da ONU um ponto de encontro e se preparou para enfrentar outro trajeto de estrada de chão, mas d'essa vez em zona de conflito. Preparou um comboio com uma das caminhonetes, no qual seguiriam Clodoaldo e outro segurança, e o sedan onde ela mesma e Tereza dirigiriam. Embora fossem apenas vinte e cinco quilômetros, a estrada era muito ruim e o perigo de serem abordados, iminente. Partiram logo cedo e, sem incidentes, chegaram a Kajo Keji às 10hs. Os militares do corpo de paz da ONU os esperavam. Era assustador atravessar uma cidade cerca de três vezes maior que Moyo inteiramente abandonada. Kajo Keji havia se transformado n'uma cidade fantasma após seguidos ataques de tropas e milícias entre 2016 e 2017. Era cercada de distritos onde o povo Kuku conciliava costumes tribais com as modernidades urbanas. Tinha até um aeroporto fora de operação desde 2015. Do mesmo modo, escolas, lojas, hospitais e igrejas, bem como as residências e as propriedades rurais... Os capacetes azuis lhes contaram que vinham àquela localidade com frequência e às vezes topavam com algum sul-sudanês que voltava de Uganda para colher uma plantação ou buscar roupas. Mas mesmo isso era muito arriscado. O chefe da patrulha, um oficial nigeriano resumiu a situação nos seguintes termos -- "A estrada que liga Juba a Kajo Keji fica intransitável durante as chuvas, de abril até outubro. A região fica isolada do resto do país. Enquanto a estrada não for recuperada, a presença de forças de segurança será esporádica. As tropas do exército nacional actuantes na região não protegem a população civil, guerreando entre a facção do presidente e a do vice. As milícias e combatentes que actuam no Congo e em Uganda se escondem n'essa região. Conflitos, sequestros e mortes são frequentes e ficam impunes." -- Enquanto Júlia conversava, Tereza fotografava as ruas vazias. Chegara a gravar em vídeo o relato no qual o nigeriano descrevia a desolação do lugar. Tudo muito triste.
O ex-policial, todavia, percebera que havia algo de incomum na proximidade entre Júlia e Tereza. Estranhara, aliás, que uma agente administrativa se colocasse em risco n'um lugar como aquele. Simplesmente não entendia porque ela viera com Júlia... Conversara com Carlos Vinícius na noite em que Júlia havia lhe pedido a separação. O pastor o tinha como confidente e contou que a esposa o deixaria para ficar com outro. Clodoaldo imediatamente se perguntou se o caso de Júlia não seria com uma das pessoas que viera com ela. Não disse nada a Carlos, porém, preferindo guardar sua suspeita para o que aparecesse. Vendo as duas juntas em Kajo Keji, pensou consigo "Onde há fumaça, há fogo!"
A patrulha da ONU os acompanhou até a fronteira com Uganda e chegaram com segurança a Moyo ainda no meio da tarde. Júlia reuniu os missionários e lhes fez o relatório da visita: Kajo Keji era efetivamente uma cidade fantasma e não havia estabilidade na região para iniciarem qualquer trabalho por lá. Deveriam esperar os próximos meses para ver se os refugiados começavam a retornar a suas casas. Entretanto, com a volta da estação das chuvas em abril, provavelmente a situação se tornaria ainda pior. Seus esforços deveriam ser concentrados em Moyo. Clodoaldo reparou que Tereza não saíra de perto de Júlia o tempo todo e teve a intuição de segui-las depois que a reunião se dispersasse. As duas foram até a horta dos fundos da missão onde Júlia mostrou a Tereza os curiosos arbustos que os ugandenses diziam ser fitoterápicos. De longe e no escuro, ele viu quando as duas se deram as mãos e trocaram um rápido beijo. O enleio durou pouco mais de um minuto, mas fora o bastante para Clodoaldo matar a charada, isto é, Tereza era o outro vértice d'aquele triângulo... Fora imediatamente ter com o pastor.
Carlos Vinícius duvidou a princípio. Jamais imaginara que Júlia pudesse ter se tornado lésbica! Aquilo era algo além de sua imaginação. Todavia, recordava que o tratamento que a pastora dera à executiva sempre fora especial. Era, de facto, um corpo estranho n'aquela missão: Os missionários eram em geral idealistas profundamente identificados com a igreja. Tereza, embora frequentasse os cultos, era uma mulher do mundo. Raramente expressava algum sentimento religioso e visivelmente o evitava. No final das contas, até que aquela loucura fazia sentido... Clodoaldo aconselhou ao pastor a agir o quanto antes. Era preciso afastar Júlia de Moyo para que a pudessem ameaçar a ela e sua família. Ele a conduziria até Kampala pessoalmente e poria n'um voo para o Brasil. Se voltasse, daria um jeito para que ela jamais chegasse a Moyo novamente. O pastor refletiu e concordou. Se Júlia voltasse e não encontrasse Tereza, as chances de fazê-la mudar de ideia eram maiores. Ademais, poderia acabar com a reputação de Júlia como pastora no Brasil se ela insistisse em ficar com Tereza. Era um importante trunfo aquela informação. Júlia até poderia desdenhar seu império, mas não o iria destruir!
Carlos esperou mais uma semana e marcou outro encontro com agentes pacificadores da ONU em Kajo Keji. A pastora iria novamente ao Sudão do Sul. D'essa vez, porém, Carlos pediu que Tereza ficasse para repassar todos os balanços financeiros para que ele pudesse fazer prestações de contas aos fundos europeus e brasileiros. Era urgente, pois, precisava viajar ao Brasil ainda n'aquela semana. Júlia se viu d'este modo obrigada a viajar n'um comboio sem Tereza para um encontro a reteria por dois dias em Kajo Keji. D'essa vez, segundo Carlos Vinícius, ela faria a inspeção de imóveis que poderiam ser adquiridos pela missão para um futuro posto humanitário do outro lado da fronteira. Tinha uma lista de prédios disponíveis que precisavam ser visitados enquanto a patrulha da ONU permanecesse por lá. Júlia partiu de manhã cedo, pressentindo que algo estava muito errado n'aquela viagem. Reparou, por fim, que Clodoaldo não a acompanhara. Não sabia o que pensar d'aquilo, haja vista que ele era homem da confiança do pastor. Entrou no carro e olhou para Tereza de pé no pátio com outros membros da missão. Sentiu um aperto no peito.
Tão logo o comboio se afastou, Carlos Vinícius chamou Tereza à sua sala. Clodoaldo os acompanhou.
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.