PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida -Parte 11
Júlia decidira ir até a casa da mãe de Tereza para encontrá-la. A notícia de que partiriam junto com o grupo inicial de missionários para Uganda em outubro deveria ser dada pessoalmente. Lá, reencontrara as meninas e seu coração fraquejou "Como deixar essas crianças sem mãe? Em nome de quê? Deus? Amor? Humanidade?..." -- e concluiu consigo -- "Eu parto consciente que é meu mais profundo desejo ser missionária. Mas, Tereza, ela parte por minha causa!..." -- Júlia se sentou no chão e começou a colorir com as meninas enquanto Tereza se demorava no escritório da igreja. Como haviam acordado, mesmo assuntos pastorais, como aquele também era, não seriam discutidos diante dos outros.
Tereza chegou em casa e abriu um sorriso enorme, de orelha a orelha, ao ver Júlia sentada com suas filhas. Abraçou, efusiva, uma após outra e se sentou também. Olhou furtivamente para Júlia e ela lhe sorriu. Apesar de sua saída intempestiva, estava tudo bem entre elas. Sem pressa alguma, dividiam lápis de cor e canetinhas enquanto coloriam livros de histórias bíblicas. Depois, prepararam café e suco para lancharem torradas com as meninas. Júlia as chamou para passearem n'alguma praça por perto e elas se animaram. Foram a pé mesmo. Na praça que as meninas costumavam a ir tinha um parquinho velho, no qual nunca se cansavam de ir. Quando finalmente ficaram a sós, Júlia fez sua última tentativa -- "Tens certeza de que és capaz de deixar tuas filhas aqui para passares ao menos um ano na África?" -- Tereza sentiu o baque, mas respondeu -- "Claro que será muito difícil para mim e, sobretudo, para elas. Entanto, acredito que partir para o Sudão seja algo que me tornará uma pessoa melhor. Sei que sofreste muito lá, mas também sabes que lá o que fazemos tem mais sentido." -- e concluiu -- "Se precisas ir, irei contigo." -- Julia baixou os olhos, respirou fundo e voltando-se de novo para ela, começou a contar as novidades -- "Eu estava disposta não permitir de modo algum que viesses comigo na missão, Tereza. Eu simplesmente não suportaria viver com a culpa de que te separei de tuas filhas, fosse por ano; fosse por..." -- não conseguiu concluir a frase. -- "Enfim, se isso acontecesse, não seria por que eu te fiz correr riscos comigo e te desviei da tua vocação primeira que é ser mãe d'elas." e continuou -- "Mas disseste uma coisa ontem que me mudou totalmente. Aquela frase "Irei aonde fores" me fez lembrar d'uma passagem do Livro de Rute." -- Júlia abriu um aplicativo no celular e leu para Tereza:
14"Então, elas desataram de novo a chorar. Orfa beijou a sua sogra, porém Rute não quis separar-se dela.
15.“Eis que tua cunhada voltou para o seu povo e para os seus deuses – disse-lhe Noemi –. “Vai com ela!”
16.“Não insistas comigo – respondeu Rute – para que eu te deixe e me vá longe de ti. Aonde fores, eu irei; onde habitares, eu habitarei. O teu povo é meu povo e o teu Deus, meu Deus.
17.Na terra em que morreres, quero também eu morrer e aí ser sepultada. O Senhor trate-me com todo o rigor, se outra coisa, a não ser a morte, me separar de ti!”
18.Ante tal resolução, Noemi não insistiu mais."
"O curioso" -- disse a pastora -- "é que a situação de Rute e Noemi n'aquele tempo é muito parecida com a que ainda hoje se percebe na África, ou seja, mulheres se deslocando d'um lugar para outro para sobreviverem". E gracejou -- "Essa é uma passagem muito usada na celebração de casamentos, mas, em geral, omitem que é uma mulher -- Rute -- declarando amor e fidelidade a outra mulher -- Noemi, sua sogra." -- as duas riram juntas: De facto, Tereza conhecia a passagem, mas jamais havia reparado n'isso.
Olhando nos olhos de Tereza, Júlia começou uma espécie de confissão -- "O amor é um mistério com que Deus nos faz conhecer a Sua face. Por amor, vale a pena viver. Eu tenho aprendido muito com o teu amor, Tereza. Logo eu, que passei os últimos anos ensinando as pessoas a amar corretamente sob a luz d'um Deus que se furta à razão humana..." -- e continuou -- "Eu busquei um casamento perfeito, blindado pela fé em Cristo, onde mulher e homem se respeitariam e seriam iguais. Eu e meu marido nos preparamos para o casamento e acreditamos ter encontrado um saber relevante para ser compartilhado com os casais cristãos. Escrevemos, palestramos, entramos na casa das pessoas pela TV... Mas a fama que adquirimos cada vez mais me incomodou e me fez buscar um modo mais autêntico de viver minha fé. Sempre sonhei em ser missionária na África, não em ser uma princesinha na mídia gospel". -- Júlia buscou a mão de Tereza sem ligar se estavam olhando -- "Meu marido tentou me demover de todos os modos. Ameaçou inclusive impor sua autoridade bíblica de esposo para que eu mudasse de ideia. Eu apenas ri. Respondi que me divorciaria d'ele se se colocasse entre mim e minha vocação. Como obedecer um marido, se quem me chama é Deus através das pessoas que sofrem? Carlos Vinícius entrou em parafuso: O casal blindado cristão se divorciando por causa do chamado de Deus?... Era um escândalo que destruiria sua imagem diante da igreja, enquanto eu seguiria pouco me importando com essa fantasia colectiva que fizeram em torno de nós dois".
Escurecia. Já estavam ali há mais de uma hora. Resolveram pegar as meninas e voltar para casa. Tereza mandou as duas se banharem enquanto sua mãe preparava a janta. Tereza pediu-lhe desse comida às meninas enquanto ela e sua amiga conversavam. As duas foram para a varanda da velha casa e se sentaram n'um banco do mínimo jardim que sua mãe mantinha com tanto zelo. "Aquelas plantas eram o orgulho da velha" -- disse Tereza a Júlia ao se acomodarem. Ali, no escuro, observavam o movimento da rua, enquanto se davam as mãos sem serem vistas. Júlia continuou sua confissão -- "Carlos, vendo que eu não mudaria de ideia, passou a enxergar a missão na África como um modo de adquirir ainda mais respeito e admiração entre as igrejas cristãs," -- Júlia sorriu, desdenhosa -- "Ele percebeu que aquilo poderia ser uma oportunidade para ele próprio, pois, esse carisma de ajudar casais cristãos tem grandes limitações pastorais em si: Ser famoso por um livro de autoajuda que se torna conteúdo a se repetir indefinidamente pelas mais diversas mídias havia se tornado uma gaiola dourada para nós: Tínhamos de estar sempre felizes, jovens, bonitos e apaixonados mesmo não sendo real. Estávamos sempre em público, à vista das pessoas, exigindo de nós a imagem que lhes vendemos, não a realidade de dois seres humanos que vivem juntos".
Tereza ouvia em silêncio. Muito do que Júlia lhe dizia já lhe era sabido desde o tempo em que era apenas uma fiel a frequentar os cultos da igreja: O pastor e a pastora sequer pareciam um casal quando estavam a sós na igreja. No púlpito, porém, eram homenagens românticas melosas que se repetiam no sentido de emocionar a assembleia e lhes inspirar, igualmente, o trato romântico em seus próprios casamentos. Até Afonso entrara n'aquela onda... Júlia voltou a falar -- "Eu não cabia n'aquele retrato de "felizes para sempre". Carlos, por outro lado, nem queria saber de buscar outros carismas para o trabalho pastoral: Envelheceriam dizendo e fazendo as mesmas coisas! Em casa, porém, mal nos falávamos... Ele é um homem metódico que se ocupa em planos de negócios e em usufruir das benesses do que conquistou. Buscou arduamente o sucesso, a aparência, a forma, enquanto eu busquei o conhecimento, a essência e o conteúdo. Formávamos uma dupla bem sucedida na medida em que a ambição d'ele completava a minha em torno d'um objetivo comum, isto é, atingir as pessoas e influenciá-las.
-- "Mas, talvez, até pela castidade antes do casamento, jamais fomos um casal ardente, apaixonado. -- e olhou para Tereza -- "Eu jamais vivi com Carlos, ou mesmo com Leilah, nada parecido do que vivo contigo." -- Tereza quis saber d'ela -- "Como era essa mulher, essa Leilah?" -- Júlia corou e sorriu -- "A mulher que me ensinou a amar mulheres?" -- e respondeu -- "Leilah é uma jovem egípcia que estudou na Inglaterra. Muito inteligente, muito bonita, curvilínea e... Muito sensual!..." -- e gargalhou ao ver os olhos de Tereza faiscantes de ciúme -- "Calma, meu amor, ela é passado bem no passado. Tenho boas lembranças com ela, mas, venhamos e convenhamos, aquilo acabou muito mal..." -- e passou a relatar o tempo antes de Khartoum, ainda no Cairo, quando se conheceram e passaram meses fazendo turismo enquanto Carlos Vinícius peregrinava pela Europa e por Israel buscando investidores para seu projeto de missão e produzir conteúdo piedoso para as igrejas no Brasil. Ela e Leilah se aproximaram muito a medida que a viagem para o Sudão do Sul se impunha, tornando-se de amigas a amantes, mas não pôde deixar de ver no plano de Leilah de entrar no Sudão por Khartoum, após todos os contratempos, uma espécie de armadilha -- "Ela sabia que um país onde a xaria é aplicada como o Sudão não era amigável a estrangeiros como o Egito... De qualquer modo, sempre é muito difícil chegar ao Sudão do Sul, pois, os únicos aeroportos existentes no país são controlados pela ONU e o território é cercado por reservas naturais imensas dos países vizinhos. Inclusive por causa do prolongado período de guerras civis, as fronteiras são fechadas e apenas passam refugiados em deslocamento. Não há comércio ou tráfego entre as nações, com exceção do Sudão, ao norte, que mantinha oleodutos para transportar o petróleo que extraem do norte sul-sudanês para os portos do mar Vermelho. O problema é que, por causa do conflito de Darfur, o Sudão se tornou ainda mais inflexível com os estrangeiros no país... Leilah nos levou ao inferno em terra que os muçulmanos criaram para os cristãos!" -- Júlia se emocionou com as lembranças d'aquele período. -- "Nunca imaginara viver tamanha tensão. Carlos surtou e eu, se não fosse por Leilah, também teria surtado." -- e continuou -- "Tudo isso para descobrir, agora, que por Uganda tudo é infinitas vezes mais fácil. Leilah, por ser egípcia e muçulmana, escolheu aquele que era o melhor caminho para ela, não para nós! Isso até não ter outra opção senão me abandonar ainda ao norte da fronteira com o Sudão do Sul... Se tivéssemos conseguido chegar juntas a Malakal, subindo o Nilo, ela não teria como me deixar mais."
Tereza a olhou longamente. Era difícil de imaginar que uma mulher tão jovem já tivesse passado por tanta coisa. Ela pegou suas mãos, as beijou delicadamente e as pôs em suas faces. Estava arrepiada. Júlia a olhou e a beijou suavemente. -- "Sim, meu amor, por Uganda a gente consegue. Falei com Carlos hoje de manhã e lhe disse que irás conosco para Kampala. Será muito difícil, desconfortável à exaustão, mas não passaremos o risco que passei." -- Os olhos de Tereza se acenderam -- "Então vamos juntas? -- e Júlia respondeu -- "Aonde fores, meu amor, eu irei!"
... e continua ...
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.