Poemas : 

DECRÉPITO

 
todas as sextas feiras vestia branco;
branco imaculado, até as meias.
Alvo dos olhares dos que ao largo
passavam e não entendiam.

Apenas um velho que lá ficava, inerte,
insólita figura, sentado inadvertidamente
à beira mar; de pernas cruzadas em padmasana.

Brancura nos cabelos encaracolados
sacudidos ao sabor do vento.
Branco algodão como as espumas
chegadas nas cristas brandas das ondas;
marolas que lambiam, e lambiam,
sonolentamente a fina areia.

Havia um emaranhado de pensamentos
que o fazia sorrir insistentemente,
até ao inexistente hilário;
cantava e gargalhava de braços erguidos
saudando os céus, e inclinando-se,
reverenciando o mar.
Seu corpo era pluma, alma, parecia levitar.
Com as mãos em concha areava o rosto
parecendo oferecer-se ao imaginário...

A densa neblina treva não o impedia
de sorrir; sorria, sorria, e agradecia...
Bom dia meu dia! Bom dia!,
com aquele olhar disperso como se nada via.
Era sábio; sabia manipular os sonhos...
O tempo o ensinara não precisar ver.
Sentia pelo som quando era poesia,
ou era mar com a mesma e velha cantoria.

 
Autor
ZeSilveiraDoBrasil
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 03/01/2019 11:40  Atualizado: 03/01/2019 11:43
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 2123
 Re: DECREPTO
Veio-me à ideia a imagem dum ermita, em plena praia, em pleno pontão, com as suas histórias, as suas descobertas, as suas contemplações, indiferente aos outros.
Veio também a entrevista que o Ferreira Gullar deu há uns anos, em que fala do seu "o cheiro da tangerina" e de como sentia o espanto, ou o momento da chegada dum poema.
O brilho dos seus olhos nessa ferramenta do passado.

Parece que posso ver o brilho nos olhos deste sujeito poético. Agraciado, apesar da tempo que já consumiu, com mais um poema, com uma revelação.

Podem ser as vestes imaculadas (se bem que o branco suja-se imenso) um amuleto.
Pode ser a maresia o ar que o inspira. Podem ser as gargalhadas a sua dança da chuva. Princípio e fim do seu canto.

A referência de "até as meias" marcando o estereótipo do que é socialmente adequado ou não, deixa uma marca mais vincada na construção do decrépito.

Gostei do poema.
Muito em jeito de prosa poética, sem deixar de poder ser uma crítica à sociedade, na forma como se deixa ligar demasiado às aparência e até se mete na vida dos outros em demasia.
Decrépito, bastante, sou eu.
Ou decreto que assim seja...

Abraço


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 04/01/2019 04:00  Atualizado: 04/01/2019 08:57
 Re: DECREPTO
Fala, Zé!
Em plena madrugada, aqui na beira da rodovia Anhanguera, de repente, começo a navegar na Net e me deparo com tua prosa poética. Vi na mesma um autorretrato permeado de algumas fugas necessárias ao encontro consigo mesmo. Gostei, cara! Matei a saudade de tua escrita e assim que puder vou achar um tempinho pra gente bater um papo: daqueles sem papas na língua... kkkk
Abraço, mano!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/01/2019 03:41  Atualizado: 05/01/2019 03:41
 Re: DECRÉPITO para ZéSilveiradoBrasil
É um pouco de sabedoria intensa, esse poema, afinal!
E quem mais haveria de ser?
E quem mais, haveria de..



..ter?(tal condição, assim?)



O meu amigo, e irmão, esse..

..tal de:
Zé Silveira do Brasil(sabe!!!)




Ah , se sabe..


(Um..)
Abraço de quem te admira!!!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/01/2019 21:54  Atualizado: 11/01/2019 21:54
 Re: DECRÉPITO
Atrás da cortina das pálpebras, os olhos do velho, voltados para dentro, enxergam os seus próprios pensamentos voejar na sua noite colorida.
Décrepito, mas nunca infeliz!

Querido Zé, gostei de traduzir seu poema em italiano. Um abraço

Decrepito

Tutti i venerdì vestiva di bianco;
bianco candido, perfino i calzini.
Oggetto degli sguardi di quelli che
passavano senza capire.

Non era che un vecchio che restava là, inerte,
insolita figura, seduto distrattamente
in riva al mare; con le gambe incrociate in padmasana.

Candore nei capelli inanellati
scossi ai capricci del vento.
Cotone bianco come la spuma
portata dalla morbida cresta dell’onda;
marosi che lambivano, e lambivano,
sonnacchiosi la sabbia fine.

C’era un groviglio di pensieri
che lo faceva sorridere insistentemente,
perfino per un’inesistente ilarità;
cantava e rideva con le braccia alzate
salutando il cielo, e inchinandosi,
in ossequio al mare.
Era piuma il suo corpo, anima, pareva levitare.
Con le mani a conchiglia si strofinava il viso
e sembrava che s’offrisse all’immaginario...

La cupa densa tenebra non gli impediva
di sorridere; sorrideva, sorrideva, e ringraziava...
Buongiorno, giorno! Buongiorno!,
con quello sguardo perso come chi nulla vede.
Era saggio; sapeva manipolare i sogni...
Il tempo gli aveva insegnato che non serve vedere.
Dal suono capiva quand’era poesia,
o quand’era mare con la stessa e vecchia corale.