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PASSIONAL- Notas d'um bilhete suicida - Parte 3-b

 
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... continua a parte 3 ...

Afonso acordou cedo. Lavou o rosto, escovou os dentes e foi até a mesa de café da manhã da pousada. Pegou uma maçã e saiu para pedalar. Todos os domingos pedalava ao menos dez quilômetros. Ali, na avenida da orla, poderia fazer fácil o dobro, dez para ir; dez para voltar.

Começou a pedalar e só parou no último quiosque da orla, encostou a magrela e sentou-se à mesa. Pediu uma água de coco e olhou as horas no celular. Eram dez horas. "Uma hora e meia de pedal. Bom!" Pegou o celular abriu o aplicativo e postou no grupo

-- Desci para a Baixada. Alguém topa um banheirão no quiosque 37 da praia das ruínas? Estou disponível por uma hora.

Não demorou nem um minuto...
-- Estou perto d'aí. Chego em dez minutos.

E mais outro...
-- Chego em trinta.

E mais
-- Que pena! Estou em Santos mas não vai rolar hoje.

Afonso ria a valer da conversa fiada d'aqueles safados. Era um grupo somente de casados. Casados que faziam banheirão. Na Capital e na Baixada.

Antes que terminasse a água de coco, chegou um carro com o cara que estava mais perto. O cara entrou no quiosque quase vazio àquela hora, fez contacto visual com Afonso e foi para o banheiro masculino do quiosque. Afonso esperou um minuto e entrou logo em seguida...

Enquanto isso, Tereza tomava o café sozinha na pousada. Viu que a bicicleta que Afonso trouxera não estava lá e deduziu que ele fora pedalar. Ligou para a mãe e perguntou das meninas. Estavam bem.

Tereza só conseguia sentir desapontamento. Afonso e ela haviam se distanciado tanto que nem pareciam um casal. Não se beijavam, não se acariciavam... Quando se esforçavam para fazer amor, era chato, previsível.

-- "Talvez sexo seja uma coisa superestimada" -- soltou Tereza em voz alta, sozinha. N'isso, o telefone tocou. Era de São Paulo, a pastora: -- "Tereza, está tudo bem? Não vieste hoje cedo. Fiquei preocupada." -- e Tereza lhe disse -- " Está tudo bem sim, querida. Afonso e eu descemos para a praia ontem..." -- a pastora atalhou -- "Que bom, querida. Então aproveita o dia. Desculpa atrapalhar teu passeio." -- Tereza lembrou do beijo e percebeu que ela queria tê-la encontrado n'aquele domingo para conversar com calma. Chegou a se arrepender de ter vindo para ser largada sozinha por Afonso. Tinha tanto a dizer a ela...

"Pastora, obrigado por ligar. Sei o quanto é corrido aí nos domingos... Também queria muito falar contigo -- e ela lhe interrompeu -- "Para de me chamar de pastora, Tereza, chama-me pelo meu nome.

-- "Sim, Júlia, eu queria muito ter ido ao culto hoje. Quero muito falar contigo. Preciso, na verdade..." a pastora teve de interrompê-la --”Tereza, vou ter de desligar agora. Depois te ligo e marcamos algo. Beijo!" E Tereza -- "Beijo!"

Beijo… A partir d'ali, Tereza só consegui pensar n'aquele beijo e tudo o que sentira desde aquele momento. Imaginava-se n'um beijo interminável com aquela mulher belíssima... Lutava com aquela imagem das duas juntas. Tentava pensar em Afonso, em qualquer homem. Inútil...

Resolveu ir até a praia mesmo estando sozinha. Sua cabeça vazia lhe dava vazão apenas para investigar a vida da pastora Júlia. E como havia conteúdo... Autora de vários livros sobre comportamento e espiritualidade, seu livro CASAMENTOS BLINDADOS -- em coautoria com seu marido, Pr. Carlos Vinícius -- havia figurado na lista de mais vendidos de não-ficção por dois meses! Aliás, desde seu casamento com o pastor, ainda com vinte e dois anos, a pastora se tornou uma espécie de celebridade gospel.

Firmou reputação como conselheira sentimental e, apesar da pouca experiência de vida conjugal, era famosa por suas dicas e receitas de sucesso matrimonial. Costumava a pregar que o casamento era um caminho de santificação.

Tereza conhecia bem essa sua faceta... Lembrava-se dos programas que a convenceram a dar uma outra chance a seu casamento. Afonso, à sua maneira, mudara tudo para não mudar nada.

Sim, à vista dos outros era outro homem: Comparecia aos cultos com ela, contava histórias bíblicas às meninas. Perdera peso, cortara a cerveja e, sobretudo, o pedal dos domingos de manhã!...

Estava mais bonito, remoçado e até mais feliz. Mas, entre as quatro paredes do quarto, era como se ela não existisse.

E ainda tinha aquela mulher...

Tereza continuou pesquisando sobre a pastora. Achou relatos missionários d'ela sobre o Sudão do Sul. Denunciava terríveis perseguições que os cristãos sofriam na África muçulmana. Viu as fotos recentes, do início do ano, d'ela em missão: muito mais morena, de burca... Júlia palestrando a autoridades em Khartoum.

No deserto, viajando sozinha...

Todos repararam, após Júlia regressar da missão, que ela estava diferente. Primeiro, porque sua imagem pública era associada a do Pr. Carlos... E ele permaneceu no exterior.

Segundo, porque praticamente parara de pregar sobre relacionamentos. Seu novo carisma, decididamente, era a África.

Denunciava o genocídio da minoria cristã no pais dos dervixes. Massacres de milicianos tolerados por décadas pelo governo. Falava de direitos humanos, liberdade religiosa e, sobretudo, da necessidade de ser presença cristã no Sudão do Sul.

A maioria do seu público, porém, não se identificava com essas questões, de modo que ela pregava cada vez menos nos cultos da própria igreja, abrindo espaço para os testemunhos de casais como Tereza e Afonso.

Dir-se-ia que Afonso, lendo o livro do casal de pastores, passara a observar cada dica conjugal. Mudando a aparência, parecia antes ocultar a essência.

Tereza não sabia o que pensar... Afonso testemunhava o casamento d'eles restaurado em Cristo mas na intimidade era ausente como sempre. Enquanto isso ela, Tereza, era beijada por uma pastora casada que fora missionária no Sudão do Sul!

E o pior: Ela retribuíra àquele beijo...

E ainda pior: Não parava de pensar n'aquele beijo...

Já era hora do almoço e nada de Afonso. Voltou para a pousada e tomou outro banho para fechar a diária do quarto. Fechou a mala, pagou tudo e foi para o carro decepcionada com a situação. Resolveu ligar para ele -- "Onde estás, Afonso? Precisamos voltar para a cidade!... -- E ele -- "Desculpa, amor, eu encontrei um conhecido aqui no quiosque das dunas e ele só foi embora faz pouco. Perdi a noção da hora..." -- e Tereza lhe respondeu -- "Ah, tudo bem. Já acertei tudo aqui. Vou te pegar para subir aí a serra. Podes ao menos tomar uma ducha e trocar de roupa quando eu chegar.

Quando chegou no quiosque, Afonso bebericava uma caipirinha. Pediram uma porção para enganar a fome e pegaram a estrada. Em quarenta minutos estavam na zona leste. Conversaram muito pouco durante o trajeto e, sinceramente, Tereza nem se aborrecia mais com a postura de Afonso.. Passaram na casa de sua mãe, pegaram as meninas e foram para o apartamento d'eles passar o resto do domingo. Foi chato. Foi normal...

... continuou na Parte 4 ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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