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PASSIONAL- Notas d'um bilhete suicida - Parte 8

 
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PASSIONAL - Notas d’um bilhete suicida - parte 8

Não disseram mais palavra sobre o Sudão, o futuro ou seus esposos… Passaram outro dia na praia, sob o sol preguiçoso de julho. O mar continuava frio demais para se demorarem na arrebentação e as meninas brincavam, ora a chapinhar nas ondas se espraiando; ora pulando ondinhas com Tereza e a pastora. Sem lágrimas, sem temores, outro dia de descanso.

Almoçaram na cidade e foram até a ribeira da foz do rio das Contas. Era entre bairros pobres, apertados, onde as pessoas d’ali moravam à espera dos veranistas. Do mirante da beira, um largo de planície verde, lindo, dominado pelo rio já cansado de ser rio e entregue ao mar, onde saveiros navegavam com velas brancas e os coqueiros se sucediam. Demoraram-se ali. Comeram um piau assistindo os barcos irem e virem, sem pressa alguma. Por fim, permitiram-se andar de mãos dadas no calçadão da praia, enamoradas ao fim de tarde, enquanto as meninas brincavam na areia. Ninguém as conhecia ou se importava com elas. O dia passou sem que elas notassem.

Quando se encaminhavam para pousada, porém, Tereza recebe um telefonema. Era Afonso…

A princípio, nada fazia sentido n’aquela ligação: Afonso, delegacia, detido, flagrante, crime sexual… Apenas uma coisa estava clara: O passeio em Itacaré havia acabado! Ainda da pousada, Tereza liga para um advogado em São Paulo para que ele ser liberado para responder em liberdade. A pastora estava solícita, mas não podia fazer muito: Envolver advogados da igreja em cries sexuais era um prato cheio para escândalos. No entanto, ajudou Tereza a encontrar um advogado e ofereceu ajuda com o que precisasse. Tereza pediu a ela para que ficasse com as meninas por algumas horas enquanto ela tinha oportunidade de ouvir Afonso.

Voltaram para Salvador o quanto antes e tarde da noite pegaram um voo para São Paulo. Tereza deixou as meninas de madrugada no apartamento da pastora para dormirem direito e foi encontrar com Afonso que, àquela hora, já estava no apartamento d’eles.

Quando Tereza chegou em casa, Afonso esperava sentado no sofá. O clarão branco da alvorada entrava pelas janelas e tudo em absoluto silêncio. Ele olhou para ela e perguntou pelas meninas. Tereza lhe explicou que as havia deixado com a pastora para que pudessem conversar a sós. Ele desabou n’um choro convulso, quase infantil, profundamente constrangido. Após alguns minutos, Tereza pediu a Afonso que recompusesse e explicasse -- "Bem, realmente acho que te devo explicações, Tereza. -- Ela o observava em silêncio -- "eu fui flagrado no banheiro do shopping trocando carícias com um rapaz de dezessete -- eu não sabia que ele era menor! -- pelo pai d'ele. O homem ficou louco: Chamou a segurança do Shopping, que chamou a polícia que me levou à delegacia onde fui preso sob flagrante. O pai do rapaz não vai abrir processo para não expor o filho, mas a polícia fez ocorrência de atentado ao pudor. Vou ser fichado como criminoso sexual..." -- Tereza finalmente conseguiu dizer algo -- Afonso, tu és gay? -- e ele reagiu insultado -- "Não! Isso é uma espécie de fetiche que envolve coisas como perigo e novidade, uma prática chamada "banheirão" -- grupos de homens que ficam com homens, geralmente casados, marcam encontros em banheiros públicos, subornam os zeladores que interditam o acesso e os caras passam cerca de 30 a 45 minutos se tocando lá dentro. Mas tem regras: é proibido penetração e sexo oral. O objetivo parece tirar o risco de DST n'um comportamento sexual promíscuo." -- e Tereza concluiu -- "Então és homossexual?" -- e Afonso --"É diferente, Tereza, homens que fazem sexo com homens podem se identificar ou não o universo homossexual. Eu prefiro dizer que são homens promíscuos que fariam coisas semelhantes com mulheres se elas se permitissem.

E Tereza argumentou -- "Mas existem mulheres promíscuas... Muitas, inclusive, são bem acessíveis, se prostituem..." -- Afonso a interrompeu -- "Pagar por sexo é a coisa mais broxante do mundo." -- e continuou ele -- "É muito difícil de explicar, Tereza, mas acho que a sexualidade masculina se alimenta de novidade" -- Tereza o interrompeu -- "Eu compreendo melhor do pensas, Afonso, mas não posso ignorar a gravidade do facto. Isso expõe a mim também." -- Ele permaneceu calado -- "Eu sentia que estavas infeliz, Afonso, mas não te abrias comigo". -- ele atalhou -- "Eu tentei falar, Tereza, mas não é algo que se conta para a esposa... Eu cheguei a te chamar para conversar, mas vieste com essa história de igreja e casamento blindado. Percebi teu esforço em salvar o casamento, mas para mim a vida a dois que temos se resume às meninas. Depois, teve esse teu lance com a pastora..." -- Tereza se sentiu desmascarada -- "Como assim?" -- e Afonso pôs as cartas na mesa -- "Eu leio as mensagens de namoradinhas que as duas trocam..." -- e ainda provocou -- "Posso ser promíscuo, mas não sou hipócrita de subir n'um púlpito e pregar a cura de casamentos enquanto tem um caso com uma executiva da igreja, também casada!" -- Afonso deu sua cartada e Tereza ficou ruborizada, mas se defendeu: “Afonso, aquilo não compreendo, eu respeito. Eu lutei por esse casamento por dez anos. Eu não procurei por isso. Apenas aconteceu. No início era uma grande admiração pela mulher que me mostrou uma esperança de vida conjugal melhor. Mas quando vi que não me enxergavas mais como mulher, percebi que ela me enxergava..."

E continuou, como se procurasse ponderar as palavras: --"Eu não te julgo, Afonso, seja como homossexual; seja como homem que transa com homens, apenas te peço que não me julgues a mim ou a ela. Eu apenas preciso saber como ficamos? Vais embora? Vendemos o apartamento e quitamos as prestações do financiamento? O que fazemos?”

Afonso coçou a cabeça, visivelmente constrangido. --”Eu não consigo te responder isso agora. Vou pegar umas roupas e passar alguns dias no estúdio." -- Tereza respondeu -- "Não é preciso por enquanto, Afonso, as meninas querem te ver" -- -- "Eu te quero muito bem. És o pai das minhas filhas e foste um grande amor para mim. Mas nunca me amaste como eu queria..." -- insistiu ela -- "Eu preferia que ficasses aqui."

-- “Aqui?!" -- insistiu perplexo -- " eu imaginei que querias apenas um pretexto para me tirar da tua vida" -- e Tereza concluiu -- "Já estás fora da minha vida há meses, Afonso. Apenas não éramos capazes de admitir.

-- "E a pastora?

-- “Ela tem problemas muito maiores que se preocupar com onde o pai das minhas filhas mora.

"Bem, parece que é conveniente para ti ter-me em casa..."

-- "Não confundas tolerância e apoio com conveniência, Afonso. Casais separados vivendo sob o mesmo teto é mais comum que nota de dois reais! Afinal, eu tenho todo o direito de viajar, a trabalho ou não, durante os dias de convivência de minhas filhas com o pai. Se te tolero aqui, é porque te reconheço tão dono deste apartamento quanto eu. Se não quiseres viver aqui, eu tampouco viverei. Vou para casa da minha mãe com as meninas e tu ficas no estúdio. E vendemos pela proposta que aparecer.”

Parecem-me bem razoáveis teus argumentos, Tereza. Traz as meninas que vou conversar com elas. De qualquer forma, vou passar uma semana fora da cidade e pôr a cabeça no lugar.

E o teu trabalho?

Talvez peça as contas. Não sei... Tem muita coisa errada em minha vida. Eu estou muito envergonhado: Ficar fichado, responder processo, quase dormir na delegacia… Eu quero dar um tempo fora e esperar que ninguém ouça falar d’isso.

Sim, parece melhor mesmo.

Afonso, eu quero te dizer que podes contar comigo.

Como começou esta história de banheirão? Quando esse lance de homens que transam com homens?

-- "Não houve nada de especial, penso. É sempre a mesma coisa: a ocasião faz o ladrão.

Eu comecei a pedalar, mais para ter uma coisa diferente para fazer, emagrecer... Eram caras parecidos comigo, isto é, casados há mais de dez anos, fora de forma. Eu comecei a reparar que um dos rapazes ficava me secando, sendo gentil demais.

Um dia, terminamos o pedal n'um clube. O tal cara que me secava me cercou e acabou rolando. Eu me senti estranho com aquilo, mas acabei gostando e querendo de novo. Depois da terceira vez, perdeu a graça. Era repetitivo, previsível. Comecei a teclar com caras em sites de encontros. D'ali para os grupos de what's foi um pulo -- Tereza interrompeu -- "Grupos? Tem grupos d'isso? -- Afonso se desinibiu -- "Tem de tudo: Banheirão, sauna, cinema, darkroom, glory holi... Geralmente homens casados e homofóbicos até." -- Tereza perguntou, incrédula -- "Como um cara pode ficar com homens e ser homofóbico?" -- e ele respondeu -- "É a coisa mais comum. O cara tem uma visão de que se ele for activo, ele continua macho. Viadinho para eles são os passivos". -- E concluiu -- "Sexualidade sempre envolve jogos de poder, estruturas de mando. É maluco, mas é assim.

-- “E tu, quando pretendias me contar que tens uma vida paralela promíscua e que eu poderia pegar doenças contigo. -- perguntou Tereza muito séria -- "Eu sempre faço sexo seguro. Nunca me expus a contaminação. Faço exames e nunca deu nada. Estou saudável."

Mesmo assim, eu tinha o direito de saber que me deitava com um promíscuo. Afonso, isso foi muito errado.

Tão errado quanto teres um caso com a tua chefe... -- provocou Afonso -- "Minhas escolhas jamais puseram a tua saúde em risco, Afonso. Eu e ela não somos nem nunca fomos promíscuas.

... e continua ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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