PASSIONAL - Notas d’um bilhete suicida - parte 7
Amanheceu. Tereza se banhou enquanto as meninas não acordavam. Ela e a pastora haviam passado quase a noite toda conversando na varanda. Tereza ainda se esperava o relato d'ela... Antes que saíssem para tomar o café da pousada, porém, a pastora já lhe batia na porta para acompanhá-las. Tereza abriu a porta e a abraçou. A pastora entrou na suíte de Tereza beijando-a. Lembraram-se das meninas e se contiveram. Enquanto as meninas dormiam, Tereza foi novamente com a pastora para a varanda e olhavam para o mar. A pastora começou a falar -- "Aquele lugar, Tereza, não é para idealistas" -- e, voltando-se para ela, concluiu -- "Eu fui para o Sudão levar esperança e acabei perdendo a minha..." -- Tereza a consolou -- "Não digas isso, meu amor, é melhor deixar o passado para trás" -- a pastora respondeu --" Não tem como, Tereza, eu prego uma mentira. A missão foi um grande fracasso: meu marido, primeiro enlouquece e depois foge. A tradutora, a quem me entreguei n'um último esforço de manter minha sanidade, me abandonou quando chegamos na zona de conflito. Todo o dinheiro que levamos, dinheiro de doações da igreja, perdido em subornos de autoridades e milicianos. Eu mal pus os pés no Sudão do Sul e quase fui morta... Só não me estupraram e mataram porque era estrangeira. Tomaram tudo o que me restara e me largaram n'um posto de observação da UA..." -- a pastora se emocionara -- "É terrível a ideia, mesmo para quem tem a fé que tinha, de que irá morrer n'uma terra estranha onde ninguém se importará" -- a pastora se continha as lágrimas, a muito custo -- Só me restou voltar ao Brasil e continuar meu trabalho pastoral para voltar ao Sudão e tentar fazer algo minimamente significativo lá. Estou com medo, Tereza, de me tornar uma fraude, um falso profeta..."
Tereza pegou em suas mãos e disse -- "Meu amor, eu iria até o fim do mundo contigo..." -- ao que a pastora lhe interrompeu -- "Eu não suportaria te ver lá, meu amor, sofrendo por minha causa." -- e concluiu -- "Eu já arrastei meu marido para essa loucura... Não tenho o direito de fazer isso contigo."
-- "O que aconteceu com ele?" -- perguntou Tereza -- "Basicamente" -- disse a pastora -- "Desenvolveu uma severa síndrome do pânico. Enclausurou-se no quarto de hotel de Kartoun alegando que seria morto tão logo saísse. Começou a gravar vídeos e escrever cartas pastorais como se fosse o próprio apóstolo Paulo... Vimos coisas muito feias tão logo chegamos ao Sudão: atentados a embaixadas, ataques a quartéis da UA, assassinatos de estrangeiros... Simplesmente o Sudão não é um lugar seguro. Para tirar meu marido d'aquele hotel, foi preciso sedá-lo e levá-lo de ambulância até o aeroporto.
Eu o enviei para a Alemanha onde um professor meu dos tempos do seminário luterano o acolheu. Ele está em Lübeck hoje, fazendo tratamento psiquiátrico."
Tereza a observa com o olhar perdido no mar. A pastora continuou seu relato: "A partir de então, eu estava por minha conta e risco em Khartoum, sozinha, procurando um jeito de chegar ao Sudão do Sul. Eu procurei as poucas igrejas cristãs que possuem representação do Sudão e todos com que conversei foram categóricos de que eu deveria partir o quanto antes. Mas, eu ainda esperava por um milagre..." -- e a pastora voltou-se para Tereza, tomando coragem para continuar: -- "Eu acreditava que se chegasse ao Sudão do Sul, mesmo sozinha, eu poderia ajudar as pessoas lá ao menos levando meu relato missionário. Quando estava quase desistindo, um milagre aconteceu: fui apresentada a uma jovem chamada Leilah que falava inglês e se propôs a ser minha tradutora. Eu a levei para o hotel e a fiz trabalhar n'um plano para que chegarmos ao Sudão do Sul. Foram várias semanas de preparação. Eu estava muito fragilizada e após perder muito dinheiro subornando um agente público que não nos ajudou, eu tive uma crise nervosa. Leilah cuidou de mim e ficamos próximas. Após me recuperar um pouco, eu percebi que sentia atração por ela. Eu estava sozinha, n'um país muçulmano e tinha de começar uma viagem longa vestida de burka... Eu estava com medo de morrer e queria que ao menos uma pessoa ali se importasse comigo. Àquela altura, ela era a única pessoa com quem conversava. Eu a convenci a beber comigo e a beijei. Ela correspondeu ao beijo e fez amor comigo. Parece loucura, mas n'aquelas circunstâncias eu achava que deveria pôr minha vida nas mãos d'alguém que se importasse comigo.
Passamos mais duas semanas n'aquele quarto de hotel enquanto eu me recuperava para seguir com o plano d'ela. Eu me entreguei àquela paixão e finalmente vivi algo realmente bom na sexualidade... No meio d'esse turbilhão, a última coisa com que deveria me preocupar se era lésbica ou infiel ao meu casamento".
E continuou -- "O facto é que o apoio de Leilah me deu força para seguir com o plano de ir ao Sudão do Sul. Ela comprou maquiagem para escurecer minha pele e lentes para os meus olhos. Ensinou-me algumas palavras em árabe, mas me recomendou que ficasse calada o tempo todo. Não poderíamos comprar um carro e ir para a zona de conflito porque mulheres sozinhas não viajam assim no Sudão... Tivemos de pegar toda sorte de transporte coletivo precário adaptado -- picapes, caminhões, vãs... -- umas mil baldeações! Leilah ficava com o dinheiro que ainda tinha. Eu dependia d'ela para comer e ter onde dormir. Mais de uma vez dormimos ao relento, esperando condução... Quando finalmente chegamos na fronteira, era uma vila com algumas dezenas de pessoas onde um soldado guardava uma cancela no meio do nada. Não havia qualquer movimento n'aquele lugar; ninguém atravessava aquela fronteira. Leilah arranjou um quarto na casa d'uma viúva para passarmos a noite. No dia seguinte, acordo e Leilah havia desaparecido: Nenhum bilhete, nada. Foi embora com todo o dinheiro que levávamos. Eu passei o dia inteiro olhando para aquelo soldado postado no meio do nada... À noite, levando água e um pouco de comida, atravessei a fronteira no escuro e andei cerca de trinta quilômetros para o Sul. Bem longe, avistei algo parecia ser um ajuntamento de casas. Estava exausta. Eu fui em direção da tal vila. Cheguei lá enquanto amanhecia! Havia passado a noite toda caminhando... Antes que chegasse nas casas, porém, fui cercada por homens de etnia árabe. Eram milicianos. Aquele lugar era uma faixa desmilitarizada onde não havia nem soldados sudaneses nem pacificadores da UA. Não era o Sudão do Sul ainda! Aqueles homens me puseram sob custódia."
Tereza olhava incrédula, à espera do pior... A pastora seguiu com a narrativa -- "Após alguns dias, decidiram me largar nos arredores d'um posto de vigia da UA. Eu tive de caminhar até a entrada do posto na mira de armas... Chegando lá, perguntei se alguém falava inglês. Apareceu um oficial nigeriano e eu me identifiquei como missionária cristã brasileira... Ele não acreditou. Só depois que comecei a falar português que acreditaram. Tive de prestar depoimento sobre como havia chegado ali. Liberada, arranjaram transporte para que chegasse em Uganda. Lá, eu contactei a igreja e me mandaram dinheiro para encontrar meu marido na Alemanha. Chegando em Lübeck, vi que ele estava bem melhor, mas ainda obcecado com a ideia da missão. Eu lhe disse que não voltaria ao Sudão nunca mais, mas ele me ordenou que voltasse ao Brasil para conseguirmos recursos para, enfim, fazermos a missão."
Agora, a pastora chorava -- "Eu te juro, Tereza, eu não quero voltar lá de jeito nenhum... Estive, inúmeras vezes, estive a um passo de ser morta.
Mas devo obediência ao meu marido. Devo coerência ao meu ministério. Devo obediência à igreja: eu fui enviada em missão! Sei que a cada dia que passa eu estou mais perto do Sudão... E, sem nenhum drama, duvido que volte de lá com vida. Às vezes acho que foi egoísmo meu me envolver contigo, Tereza, mas eu não podia voltar para lá sem me sentir viva, amada... Estes dias ao teu lado, meu amor, eu levarei comigo como os melhores da minha vida".
A pastora e Tereza se abraçaram e choraram juntas até perderem a noção do tempo. Passados alguns minutos, acorda a filha mais nova e, parada diante das duas, chama pela mãe. A pastora se levantou assustada e foi para o banheiro. Tereza sentou-se com a filha -- "Estás chorando, mamãe?" -- e ela respondeu -- "Querida, a amiga da mamãe está muito triste com um problema, mas esta tudo bem" -- e, lavando o rosto, saiu com as meninas para tomar o café da manhã.
... e continua ...
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.