PASSIONAL - Notas d’um bilhete suicida - parte 6
-- "Eu entendo, Tereza, que Cristo conhece os corações. Os cristãos, não: Só conhecem aparências." -- disse a pastora, olhando para o mar de Itacaré enquanto as filhas de Tereza faziam castelos na areia da praia. E continuou -- ”Eu estou muito feliz de te ver feliz aqui com elas, imagino a falta que sentes... ”. Tereza sorriu. A pastora ficou olhando demoradamente para as filhas de Tereza e soltou em meio a um suspiro: “Amo crianças, mas acho que nunca terei filhos. -- e Tereza -- ”Mas, por quê?” -- e pastora respondeu -- “Porque eu amo uma mulher” -- d’essa vez Tereza e a pastora, às gargalhadas, choravam de rir até se emudeceram e se olharem cúmplices. Tereza insistiu: -- ”Ainda és muito nova. Logo sentirás o chamado da Natureza” -- ao que a pastora interessou-se -- “Foi assim contigo? -- e Tereza --”Isso é uma longa história…” e atalhou “À noite te conto.” -- e sorriu entre brejeira e maliciosa.
A pastora continuou d’onde havia começado -- ”Acredito que Jesus enxerga o coração das pessoas e sabe que o que sentimos é verdadeiro. Não me sinto hipócrita por te amar e continuar meu trabalho pastoral. Faço o que faço pela missão.” -- tirou os óculos escuros e olhou diretamente para Tereza -- “Eu sempre fui apaixonada pela igreja cristã e quis desde muito nova dedicar minha vida ao Evangelho. -- sentindo peso d’aquelas palavras, parou para tomar fôlego e continuou. -- “Mas eu era mulher e o papel das mulheres no Cristianismo sempre fora secundário. São raras as profetisas e heroínas na Bíblia; raras as santas e ainda mais raras as doutoras da igreja.” -- lembrou à guisa de introdução. -- “Ainda menina, eu já lia os escritos de grandes místicas como Santa Catarina de Sena e Santa Tereza d’Ávila. Quando tinha dezesseis, meu pai me enviou para um seminário luterano e eu me graduei em Teologia. Era uma das poucas mulheres e, mesmo entre as igrejas neopentecostais, ainda somos muito poucas pastoras. Eu percebi, desde o início, que se não me casasse ninguém escutaria o meu ministério. Foi então que comecei a namorar com meu marido, que já era um jovem pastor neopentecostal, e abraçamos a nossa primeira causa, a do namoro cristão casto: Mulher e homem se mantendo virgens até o casamento. Foi um sucesso!... D'uma hora para a outra, as pessoas começaram a me escutar. Nós éramos convidados para toda sorte de programas de TV e pregávamos nas igrejas em cultos voltados para a juventude. Ficamos famosos como casal de pastores e nos deslumbramos: Casamentos dos sonhos, lua de mel luxuosa, enxoval de princesa… Ficamos sendo assunto de frivolidades por um tempo. Eu resolvi voltar a estudar e me graduar em Psicologia. As primeiras dificuldades no dia a dia de casada me fizeram interessar por terapia de casais. Eu não entendia como um casamento cristão entre pessoas de coração puro podia ter os mesmíssimos problemas dos casamentos comuns. Como era ingênua…” -- e suspirou sorrindo, linda! Tereza a interpelou -- “Querida, quando me beijaste, aquilo foi novidade para mim, mas não para ti. Ingênua fui eu que vivi esperando carinhos ardentes de mãos frias…” -- a pastora sorriu, entendendo onde Tereza queria chegar: -- “Eu me casei virgem, Tereza, mas não demorei a entender que havia algo errado com nós dois. O ideal cristão ainda enxerga a sexualidade, mesmo no casamento consagrado, como algo negativo, pecaminoso. Quero dizer, não há pecado em ter relações com o marido, mas é pecaminoso gostar a ponto de pôr em segundo plano a vida de oração e, sobretudo, a vida pastoral. Cristãos almejam ser santos e as mulheres, mesmo esposas, são obstáculos a esse ideal. Eu percebi, com os anos de casada, que havia um profundo descompasso entre vida espiritual e vida sexual. Quando eu compreendi, pela experiência da terapia de casais, que a sexualidade era importante na manutenção dos vínculos de casal, eu comecei a me preocupar… Eu era muito frustrada com a intimidade que tinha com meu marido! Chegava a ter saudade do nosso tempo de namoro casto… Na cama, era raro, rápido e ruim. Muita demonstração de afeto nos púlpitos das igrejas e um desinteresse injustificável entre quatro paredes. No fim, o casamento consagrado era um ideal lindo, mas uma realidade difícil.”
Tereza a interrompeu -- “Entendo que o casamento nunca é como se sonha, mas quando descobriste que era possível amar uma mulher?” -- a pastora a olhou, percebendo que precisava parar de dar voltas -- “Olha, Tereza, eu sempre quis ser pastora e acreditava muito que ajudava as pessoas, mas cada vez mais sentia um vazio sufocante.” -- a pastora se calou como procurasse as palavras. Sem aviso, Júlia se levantou e foi até as meninas para brincar com elas. Depois d’alguns instantes, entrou no mar e, com água até os seios, esperou. Tereza percebeu que aquele era o ponto mais difícil para a pastora e respeitou o súbito interesse d’ela pelo mar. Levantou-se e foi atrás d’ela, após recomendar às meninas que não saíssem da areia. Avançou pela água fria e se juntou à pastora. Disse-lhe -- ”Meu amor, se te dói, não precisas contar mais nada” -- e a pastora, sorrindo, lhe respondeu: -- “Estou com frio. Abraça-me…” agora foi a vez de Tereza sorrir -- “Que manhosa… Eu toda preocupada contigo e tu querendo me atiçar! -- e a pastora -- “Não, me amor, eu só quero te sentir comigo. Eu sei que tenho que te contar tudo, mas é difícil para mim.” -- Tereza foi até ela e a abraçou por trás, dizendo-lhe ao ouvido -- “Apenas me diz que me amas. Nada mais me importa.” -- a pastora virou-se e, olhando-a, disse -- “Eu te amo, Tereza. Muito!” -- e desvencilhando-se d’ela, mergulhou no mar.
Tereza, profundamente emocionada, viu a pastora emergir alguns metros à sua frente… Como era linda! Nada parecia ameaçar aquela paz. Olhando-a, com as filhas alegres e seguras ao fundo, Tereza teve para si que aquele era o quadro mais bonito de sua vida… Um instante ao mesmo tempo belo e significativo cuja intensidade facilmente a levaria às lágrimas: Era simplesmente impossível ser mais feliz. A pastora voltou para perto de Tereza e lhe beijou. Um beijo furtivo, rápido, mas o bastante para as lágrimas deslizarem por sua face. Lágrimas de alegria. Elas saíram do mar e buscaram as meninas para se banharem um pouco. As duas faziam uma festa incrível cada vez que a Tereza e Júlia as levantavam com os braços para que pulassem as ondas. Tudo simples, como devia ser. N’aquela praia quase deserta, pareciam distantes demais das guerras da África, das mazelas do Brasil e de toda a maldade do mundo. Pareciam retornadas ao Éden, como se tudo fosse bênção d’um Deus que as compreendia como jamais os homens seriam capazes. O sol começou a se pôr e a tarde caiu em meio a um céu de lilases e azuis profundos. Em paz.
Voltaram para a pousada e deram banho nas meninas. Lancharam e se deitaram com elas para assistir um filme infantil. Muito cansadas do dia na praia, as meninas não demoraram a dormir. Tereza e a pastora foram para a varanda da suíte de Tereza. Abriram uma garrafa de vinho e fatiaram queijo. O mar quebrava no costão e a brisa lhes refrescava a pele que ardia. Elas retomaram a conversa da tarde -- “Ainda estou esperando a história do tal chamado da Natureza, querida…” -- adiantou-se a pastora. Tereza sorriu -- “Não há muito o que contar… Minha história é muito comum comparada à tua. -- a pastora a interrompeu -- “Meu amor, és tudo para mim, menos uma pessoa comum.” -- encabulada, Tereza continuou -- “Minha mãe teve três filhos. Eu fui a única menina e a caçula. Quando tinha quatro anos, meu pai saiu de casa e minha mãe trabalhava o tempo todo. Passei a infância inteira ouvindo minha mãe dizer que os homens sempre vão embora… Vivíamos com muita dificuldade, mas bem. Meus irmãos, que conviveram mais com meu pai, adoravam-no. Minha mãe não podia falar d’ele que eles o defendiam. A mim, ficava a impressão de que meu pai não me amou: Jamais se interessou por mim. Cresci me prometendo que quando tivesse a minha própria família, custasse o que custasse, meus filhos cresceriam com o pai. Ora concordava com minha mãe de que meu pai fora um fraco; ora concordava com meus irmãos de que minha mãe o afastara de nós”. Tereza interrompeu a narrativa e observou a pastora: Ela se mantinha interessada e atenta. Por fim ela lhe encorajou -- “Continua!”.
Tereza respirou fundo e lhe disse -- “Eu nunca fui namoradeira. Estudava muito e comecei a trabalhar fora com dezesseis. Não saía. Não paquerava. Nada. Mas senti, sim, o chamado da Natureza desde muito nova: Era muito afogueada! Senti meu primeiro orgasmo com doze, sem me tocar, vendo um casal se beijando n’uma novela. Senti meu corpo tremer forte e logo percebi a calcinha toda melecada… Fiquei muito envergonhada, mas queria sentir aquilo de novo, o tempo todo. Assisti muita comédia romântica para ver beijos de cinema! Tinha paixões no colégio, mas nunca ficava com os colegas: Morria de medo de que se começasse a beijar alguém eu não conseguisse parar! Mas minha mãe, reparando em meu assanhamento, sempre me repreendia para não ter filhos nova e “acabar como ela”. Confesso que era o que mais temia... Ser como ela: Sozinha, trabalhando por dois e desiludida do amor.” Tereza sentiu a boca seca. Tomou um pouco de vinho e ficou pensativa: Nunca pensava n’aquelas coisas, mas pareciam ser as únicas capazes de explicar aquele casamento estranho que se insistia em viver com Afonso. A pastora a despertou de seu transe -- “Tudo bem, mas casaste virgem?” -- perguntou de chofre” -- Tereza respondeu -- “Não, minha primeira vez foi com um namoradinho da faculdade, com dezoito. Namorávamos havia seis meses. Eu não aguentava mais de vontade!” Júlia arregalou os olhos -- “E, como foi?” -- Tereza pousou a taça na mesa e respondeu -- “Muito ruim. Ele parecia querer muito me tranquilizar e ficou bobo. Pareceu que saber que era virgem o bloqueou… Gozou rápido.” -- a pastora deu uma gargalhada, mas logo se conteve -- “Desculpa, meu amor!” -- ao que Tereza lhe respondeu -- “Tudo bem, foi engraçado mesmo” -- e as duas caíram no riso juntas.
Tereza se achegou na pastora e lhe deu um beijo de cinema, longo, embevecido… Ao final, disse-lhe ao pé do ouvido: -- “Era assim que queria que me beijassem…” -- e a pastora gracejou -- “D’esse jeito, eu que vou ficar com a calcinha melecada” -- e as duas caíram no riso de novo.
Era bom falar d’aquelas coisas sem o drama que sempre carregaram, pensou Tereza consigo. Junto d’ela havia uma atmosfera de amor que a comovia. Jamais, para ninguém, havia dito coisas que lhe eram tão importantes sobre si mesma e tão desimportantes para os outros. Não conseguia deixar de sentir especial quando ela lhe olhava. Era doce e provocador ao mesmo tempo. Sentia que, se pudesse levar as meninas, iria ao Sudão do Sul, ao Sudão do Norte e até o fim do mundo só para ter aqueles olhos sobre si.
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... e continua ...
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.