PASSIONAL - Notas d’um bilhete suicida - Parte 5
-- “Cancela ou remarca todos os eventos agendados para os dois últimos finais de semana do mês” -- disse a pastora à Tereza na secretaria da igreja --”Fui convidada a palestrar n’um encontro de igrejas no Centro de Convenções da Bahia!” -- e concluiu muito entusiasmada -- “Quero que d’esta vez tuas filhas venham conosco”.
Tereza, surpreendida com o convite da pastora, ainda questionou --”Mas não vai ser muito corrido lá? -- ao que a pastora -- “Apenas na noite da conferência” -- disse ela -- “Depois, quero descansar uns dias em Itacaré para as meninas aproveitarem a praia”. Tereza não sabia o que dizer: Era ao mesmo tempo muito gentil e cuidadoso o convite da pastora, mas Afonso ainda tinha de ser convencido. Ela ligou para ele explicou a situação. Ele a princípio achou estranho, mas se convenceu que seria legal para as meninas. No final, não se opôs. Duas semanas depois, desembarcavam em Salvador.
O Centro de Convenções era um prédio extenso em estrutura metálica e pano de vidro de cujos andares superiores se tinha uma vista impressionante do mar. Contrastava com o calor constante da cidade o forte ar-condicionado lá dentro. Eventos em Salvador, mais do que em São Paulo ou no Rio, atraíam participantes do Brasil inteiro, fosse pela beleza das praias; fosse pela localização em relação dos grande centros urbanos do norte e do nordeste do país. Mesmo convidados do Sul e do Centro-Oeste se esforçavam em vir. Tereza acompanhou a pastora até o palco e se postou na primeira fileira de assentos do auditório lotado. Mesmo depois de tantos eventos, ainda se emocionava em vê-la discursar. Como ajudara a escrever o texto, acompanhava a sua cópia enquanto a pastora se apresentava:
-- “Caríssimas! Caríssimos!”
“O espírito do Senhor DEUS está sobre mim.”
Isaías 61
1 O espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos;
2 A apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes;
“Sim, eu fui enviada em missão para proclamar a Boa Nova aos que sofrem. Não fui ao estrangeiro para minha glória, para me exaltar diante de vós, mulheres e homens de Deus. Ao contrário, fomos, eu e meu marido, porque o clamor d’estes sofredores se fez ouvir mesmo aqui, do outro lado do mundo, entre as prósperas igrejas cristãs do Brasil. Fomos ser presença de Jesus Cristo n’uma zona de guerra, uma terra arrasada! Um lugar que muitos mapas ainda não indicam existir sequer: o Sudão do Sul! Trata-se d’uma província de maioria negra e cristã em processo de secessão do país de etnia árabe e maioria muçulmana que conhecemos no colégio. Um conflito que a ONU e a UA acompanham há décadas em vista dos seguidos genocídios e crimes contra a Humanidade que ali têm lugar. Confesso que também sabia muito pouco sobre esse lugar quando senti o chamado de Deus para ser missionária lá. Quem conhece minha vida pastoral com meu marido sabe que sempre procuramos ajudar casais a viver de maneira santa e feliz o casamento. Esse foi o carisma que primeiramente identificamos em nossa vida pastoral. De modo que não foram poucos que estranharam esse ímpeto que senti quando, apoiada por meu marido, nos decidimos a iniciar essa missão cristã no Sudão do Sul.”
“Gostaria de compartilhar com vocês como foi esse chamado: Eu assistia o noticiário da BBC e passava um especial sobre o conflito no Sudão do Sul. Eram sucessões de atrocidades e desastres que arrastavam uma nação já muito pobre para a violência e a miséria extremas. No meio d’estes relatos terríveis, o repórter mostra a história d’um senhor de sessenta anos que trabalhava n’uma construção. Ele fora autorizado a construir nas terras pacificadas do campo de refugiados e levantava com toda dificuldade uma espécie de cabana. Quando perguntado sobre seus planos e o que estava construindo, aquele homem que já perdera esposa, filhos e irmãos, completamente desenraizado a recomeçar a vida n’uma terra que lhe era estranha, disse: “Estou construindo uma igreja cristã. É preciso congregar essas pessoas que aqui chegam refugiadas de todas as partes e lhes oferecer ao menos a esperança de dias melhores. -- e o repórter insistiu -- “Mas, não é mais importante construir escolas para as crianças ou mesmo uma casa para tua nova família? -- o velho acabara de se casar novamente -- Por que uma igreja?” -- e o velho respondeu -- “Porque sem a fé em Deus, o que resta são os homens e sua maldade cheia de razões. Para quem perdeu tudo, perder até a esperança d’algo melhor -- n’essa vida ou na próxima -- é entregar-se à morte.” -- E o repórter se calou.”
“N’aquele momento eu senti um ardor -- o peito em chamas, como os dois discípulos diante do Senhor ressuscitado -- e disse sozinha em voz alta: É lá que também eu devia construir uma igreja cristã.” Isso me fez missionária. Isso me trouxe aqui n’essa noite: Peço que vocês, mulheres e homens de Deus, me permitam pregar esse projeto missionário em vossas igrejas! Que eu possa continuar lutando para que eu e meu marido possamos levar a esperança de dias melhores a esses cristãos -- e concluiu -- que a paz de Nosso Senhor permaneça em vossos corações”
-- “Amém” -- irrompeu a assembleia de pastores e pastoras por todo o auditório.
Enquanto a pastora se recolhia ao camarim do auditório, Tereza era abordada por assessores de igrejas das mais diversas denominações. Eram convites para pregar em igrejas de todo o país que, se confirmados, levariam ao menos mais seis meses de andanças pelo Brasil antes que a pastora voltasse para a África. Tereza se alegrava com cada convite, embora já considerasse seriamente a ideia de acompanhar a pastora inclusive na missão. Isso, porém, Afonso jamais aprovaria: Ir com as meninas para uma zona de conflitos nem por um terreno no céu com assinatura de Deus no contrato! Tereza temia pelo futuro de sua relação com a pastora… Estava cada vez mais envolvida por aquela mulher, apesar de todos os senões: Afonso, o marido d’ela, a igreja, a missão e, sobretudo, Deus.
Tereza trabalhava com o presente, vivia no presente. Não conseguia vislumbrar qualquer futuro onde elas pudessem viver juntas. Em função do trabalho, estavam sempre em contacto e se viam todos os dias. Por vezes, mal se permitiam um olhar mais profundo, um resvalo de mãos… N’outras, almoçavam juntas e passavam a tarde no apartamento d’ela, nuas e lânguidas. Eram horas e horas de brincadeiras eróticas n’uma intimidade delicada onde Tereza descobria-se plenamente amada e desejada. Tudo o que decidiam fazer juntas era leve, sem dramas ou conflitos. Jamais se beijaram novamente na igreja ou onde pudessem ser surpreendidas, passando a todos uma imagem de eficiência profissional, pois, de facto, o ritmo de compromissos da pastora exigia mais planejamento e atenção que qualquer coisa com que trabalhara antes. Tereza se desdobrava para pegar as meninas no colégio e lhes ajudar à noite com os deveres enquanto Afonso se mostrava cada dia mais distraído. Não se sentia culpada pelo caso com a pastora, mas sabia que seu casamento, blindado ou não, não fazia mais qualquer sentido. Não podia, contudo, jogar tudo para o alto, separar-se de Afonso e ir criar as meninas na África ou qualquer outro lugar com uma pastora evangélica casada que ensinava a blindar casamentos por meio da fé… Por mais que pensasse, não via como viver com a mulher que amava, mas muito menos sem ela.
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... e continua ...
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.