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PASSIONAL- Notas d'um bilhete suicida - Parte 3

 
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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 3

A semana passou sem que Tereza tirasse da cabeça o beijo da pastora. Pela primeira vez na vida, ela não sabia o que fazer. Sentia seu corpo a consumir n'um ardor sem fim. Pegou-se pesquisando sobre amor entre mulheres no serviço e, para sua surpresa, encontrou relatos muito parecidos com o que acabara de vivenciar. Ao contrário do que muitos argumentavam, não era incomum mulheres de mais de trinta anos, já casadas e com filhos, apaixonando-se por amigas ao invés de começarem casos com outros homens. Deparara-se inclusive relatos de pessoas muito religiosas, com dilemas morais semelhantes ao seu, nos quais a idealização do matrimônio cristão revelou-se sobretudo repressão de impulsos cuja realidade se esforçavam em ignorar. É como se, decepcionadas pelo caminho de felicidade prometido pela fé e pela aprovação dos pais, finalmente se permitissem aceitar uma relação na qual o prazer sexual fosse tão importante quanto a afetividade. Vencer o tabu de beijar uma pessoa do mesmo sexo era apenas o primeiro passo de muitos que essas mulheres tiveram de enfrentar até se aceitarem. Em geral, identificavam o amor entre mulheres como promiscuidade ou, pelo menos, um estilo de vida incompatível com a maternidade. Muitas salientavam exactamente isso: Durante certo tempo, ser mãe lhes fora mais importante que ser mulher, não havendo como, nas relações heterossexuais e monogâmicas que viviam, desenvolverem sexualidades plenas pelas quais ansiavam. Havia inclusive relatos de mulheres que jamais cogitaram ter relações como outras mulheres que, já na maturidade, apenas descobriram o orgasmo e mesmo o gosto por ter relações frequentes depois de se aceitarem lésbicas ou bissexuais.

Tereza, porém, ainda tinha muitas dúvidas. Certeza apenas que, o quer que fizesse, não deveria afetar às suas filhas. Portanto, separar-se estava fora de cogitação. Na verdade, ela precisava insistir com Afonso; talvez até conversar abertamente com ele sobre a sua insatisfação. Entretanto, só de pensar na possibilidade já a fazia desanimar. A relação d'eles já ficara por um fio no passado. Sabia que ele não estava disposto a mudar n'isso, pois, demonstrava uma indiferença quase absoluta sobre sexo. Muito Tereza já havia especulado a respeito: Talvez fosse trauma d'um abuso que ele se nega a comentar... Talvez fosse hormonal, uma carência orgânica que não vê sentido em pesquisar. Não sabia... O facto é que ele não fazia nada de errado: Todas as pessoas com que mantinha contacto eram casadas e maduras como ele próprio e sob claros limites de civilidade educada. Às vezes, Tereza torcia para encontrar algum traço de atração sexual n'essas amizades, mas nunca parecia haver nada além de amizade. Afonso era curioso no trato dos amigos: Alternava períodos de proximidade e distanciamento d'um modo que Tereza não conseguia compreender. Ele parecia se cansar da presença das pessoas e simplesmente parava de querer encontrá-las... Perdera a conta do número de vezes que o vira procedendo assim.

Sem embargo, Tereza tomou uma resolução: Iria passar o próximo final de semana sozinha com Afonso. Mandaria as meninas à casa de seus pais e cancelaria qualquer comparecimento às reuniões e cultos da igreja. Era bom, inclusive, não encontrar a pastora por enquanto, pois, não tinha ideia de como reagiria. Cada vez que lembrava d'ela ou do ocorrido, sentia-se lânguida, vulnerável.
Comunicou Afonso de seus planos e ele apenas sorriu, sem revelar o que pensava. Ele ligou para os amigos do pedal e disse que domingo de manhã não iria. Tereza preparou-se para descerem a serra e reservou pousada na Baixada, aonde tinham costume de veranear. Se Afonso não aprovou o roteiro, tampouco desaprovou: pôs a bicicleta no carro deixando claro que manteria sua rotina de pedal na praia. E assim foi.

Tereza e Afonso desceram para o litoral sábado de manhã, chegando à hora do almoço. Como acordaram mais tarde e tomaram café na estrada, estavam ambos sem fome. Afonso chegou no quarto e foi se banhar, enquanto Tereza desfazia a mala e as bolsas. Terminando o banho, chamou para irem à praia. Tereza se animou. Vestiu uma saída de praia transparente por cima do biquine e pôs um chapéu de palha. Foram a pé mesmo, só dois quarteirões. Lá chegando, Tereza se esticou na areia enquanto Afonso entrava no mar. Ele estava muito bonito, atlético. Tereza achava tudo ótimo até se cansar de vê-lo n'água. Resolveu entrar também, apesar de ter de deixar as coisas na areia. Chamou por ele: --"Ô Afonso!" -- e ele veio ter com ela. Estava feliz de estar ali. Tereza sorriu, embora a água estivesse fria para o seu gosto. Ele mergulhava e arriscava umas braçadas, enquanto ela começava a bater queixo. Não aguentou permanecer ali e voltou para a areia. Afonso tardava feito um menino grande no mar. Quando finalmente veio, chamou Tereza para comerem peixe frito n'algum quiosque. Foram.

No quiosque, Afonso parecia disperso. Tereza propunha assuntos, mas ele não parecia se interessar por nada. Tereza não contara a Afonso sobre o beijo da pastora e ela se sentia culpada por lhe esconder isso. Não tinha, porém, coragem de comentar sobre aquilo. Rendida, Tereza resolve falar das filhas: --"É estranho estar aqui sem as meninas..." -- ao que Afonso reagiu imediatamente ao gatilho -- "Estava pensando n'isso agora: As duas adoram peixe!" -- e desandou a falar d'elas... Ali estava o velho Afonso de todos os dias. Um pai entusiasmado.

Tereza achava graça d'essas transformações no marido. Era evidente que se sentia muito à vontade na convivência com ela, mas não permitia nenhuma intimidade. Era como se fossem um casal de irmãos que se queriam bem, mas jamais se interessando pelo outro após certo limite. Afonso era categórico sobre discutir a relação, ou seja, achava a coisa mais chata do mundo. Nem adiantava tentar: Ele começava a concordar com tudo apenas para Tereza não ter mais o que recriminar e deixá-lo logo em paz... Eram as conversas mais inúteis que poderiam ter, portanto, Tereza evitava qualquer assunto que desembocasse em cobranças ou mudanças de vida. Ali na praia, contudo, ficava ainda mais evidente que eram um casal frio e distante, embora pacífico.

Comeram o peixe, tomaram caipirinhas e contemplaram o fim de tarde. Nem um beijo. Nem um carinho. Andavam de mãos dadas no calçadão, mas não sentiam necessidade de tocar. Tereza, para falar a verdade, já se acostumara com o jeito de Afonso, não adiantava reclamar. Voltaram para a pousada ávidos para tirar o sal do mar. Tereza entrou no banho primeiro. Afonso não veio se juntar a ela durante o banho. Ela ficou decepcionada... Ela se secou e saiu do banho nua, com a toalha nos cabelos. Ele nem ligou. Pegou sua toalha e entrou. Ela ainda pensou em invadir o banho d'ele, mas já lhe pareceu apelação. Tentaria outra coisa. Deitou-se na cama de costas, nua, e assim que ele saiu do banho pediu que lhe passasse o hidratante nas costas vermelhas. Ele o fez como se fosse uma esteticista cansada de ver bundas alheias. Tereza ficou calada o tempo todo. Se falasse, seria para chamá-lo de corno ou broxa. Conteve-se.

Afonso se vestiu dizendo que iria pedalar pela orla. Tereza respondeu que o encontraria mais tarde no mesmo quiosque. Ele saiu. Tereza, sozinha, se pega dizendo em voz alta: -- "Por que eu não me surpreendo..." -- e mandou uma mensagem para a pastora explicando que estava no litoral, logo, não se veriam no culto de domingo à noite.

Segunda-feira, na lanchonete perto do trabalho, Tereza engolia outra xícara de café preto. Mal pregara o olho, à noite toda revirando na cama. Chegou a procurar Afonso, mas ele disse que tinha-de dormir. Normal. Para ele, o problema não era ele, sim ela, Tereza, às voltas com aquelas sensações que lhe atiçavam a libido. O beijo da pastora a despertara d'um longo período de repressão dos desejos em função da assexualidade de Afonso. Tereza jamais havia traído o esposo e muito menos beijado uma mulher. Não se sentia culpada, visto que não havia procurado por aquilo, mas não podia negar o quanto mexera com ela a carícia delicada d'aquelas mãos e, sobretudo, a ternura d'um beijo diferente de tudo que já sentira...

Óbvio que não era correto duas mulheres casadas se tocando d'aquele modo, mas seu casamento assexuado finalmente cobrava seu preço: Após anos preocupada em ser abandonada por Afonso, vigiando de perto suas amizades, era justamente ela, Tereza, quem se via inclinada viver um segredo. Nunca havia se dado conta, mas a relação mais discreta que poderia ter fora do casamento é justamente com outra mulher. Sobretudo, alguém que tivesse tanto a perder quanto ela própria se as coisas saíssem do controle.

Saiu d'ali e terminou de chegar ao trabalho visivelmente ruborizada. Parecia estar escrito em sua testa: "I kissed a girl and I liked it!"... Com muito custo chegou à sua sala, fugindo de olhares e cumprimentos, para começar o trabalho. Antes que ligasse o monitor, porém, recebe no celular uma mensagem da pastora chamando para almoçarem juntas... Ela confirma, marcando n'um restaurante mais longe do escritório. Fosse como fosse, queria não ser flagrada por algum colega.

Mas, flagrar o quê? Eram apenas duas amigas almoçando juntas. Tudo bem que jamais se vissem senão nos finais de semana, mas se falavam sempre, mesmo quando ela estava em missão, e, após meses de convivência, soubessem tudo da vida uma da outra. Tereza ligou para Afonso e pediu que buscasse as meninas no colégio mais tarde. Como quase nunca fazia isso, não questionou. Tereza se assustava com seu próprio pragmatismo diante d'algo que jamais fizera e que, provavelmente, não daria em nada. Aquele encontro poderia ser milhões de coisas, não necessariamente românticas.

As horas passavam vagarosamente n'aquela manhã e seu trabalho simplesmente ficou sobre a mesa, intocado. Não tinha a menor capacidade de se concentrar em qualquer coisa que não fosse o seu encontro. Decidira sair mais cedo e acabar com aquilo o quanto antes, quase certa de que a pastora tivesse criado juízo e marcado o encontro apenas para dispensá-la. Como se arrependera de sua reação nervosa!... Aquela oração para manter as aparências... Tanta coisa para dizer e falar o óbvio? Sim, não podemos. Mas também ninguém precisa saber do que se faz entre quatro paredes! Não podia continuar se enganando: precisava de ser de tocada; de carinho; de gozar. Ardera à noite toda por causa de cinco minutos de contacto com aquela mulher. Precisava se declarar ainda que fosse para ouvir um redondo não. Por fim, Tereza saiu do serviço alegando uma enxaqueca monstruosa e foi para o restaurante quase uma hora antes do marcado. Simplesmente não conseguia esperar ali.

Tereza já estava à mesa quando a pastora chegou. Estava simplesmente linda n'um conjunto de linho claro que destacava sua elegância. Usava óculos escuros enormes de aros grossos que lhe vedavam a emoção dos olhos, mas destacavam seu enorme e jovial sorriso. Estava expansiva e cumprimentou Tereza com beijinhos e tudo. Difícil dizer qual seria sua postura diante do encontro. Tratavam-se com a naturalidade de sempre enquanto faziam o pedido. A pastora pediu vinho e depois se deu conta de que Tereza estava no meio do expediente... Desculpou-se enquanto Tereza lhe dizia que estava tudo bem, que bebessem juntas um pouco. A pastora conduziu a conversa habilmente enquanto comiam, recordando os meses no exterior, embora evitasse falar do marido ou da igreja. Ninguém que as visse ou lhes ouvisse poderia recriminá-las do que quer que fosse: Eram duas amigas almoçando juntas.

Quando acabaram e pediram a sobremesa, Tereza finalmente não aguentou mais aquele teatro de boas maneiras e interrompeu a agradável conversação da pastora: --"Eu preciso te falar, querida, sobre aquela noite." A pastora se calou e, esfíngica, a encarava por trás das lentes escuras. Tereza continuou: -- "Eu quis muito te ver hoje porque eu queria consertar as coisas entre nós. Na verdade, eu queria concluir o que te disse n'aquela noite e não tive capacidade de expressar" -- parou e bebeu um pouco do vinho. A pastora continuava em silêncio, impassível. A sobremesa foi servida. Comeram em silêncio e, após duas colheradas, Tereza recomeçou intempestivamente: "Eu jamais havia beijado uma mulher antes e não esperava por teu beijo. Reagi d'uma maneira irrefletida, nervosa, preocupada sobretudo em evitar escândalo: Podíamos ser vistas, como de facto fomos, e aquilo simplesmente sairia do controle." -- Agora a pastora tomou a taça e sorveu um longo gole de vinho. Permaneceu calada, contudo. Tereza continuou: --"Eu, porém, não posso negar o senti. E eu preciso continuar sentindo isso: O teu beijo me despertou um ardor que me queima desde então, sem parar. Eu não me sinto culpada. Não. Eu fiz de tudo para manter minha família e consegui. Não se trata apenas de mim ou de Afonso, trata-se de terminar de criar as meninas" -- sua voz ficara emotiva n'esse ponto -- "É evidente que Afonso é grato pelo que construímos e resgatamos. Ele está realmente mais feliz. Está bem." -- e concluiu derramando uma lágrima: "Mas eu não estou..." -- pegou o guardanapo e secou o rosto, tentando transparecer naturalidade. Tomou mais vinho e prosseguiu: -- "Eu sou uma mulher que precisa ser tocada por alguém que se importa comigo e não aguento mais abrir mão d'isso." -- outra lágrima rolou e, de novo, secou com o guardanapo: -- "Depois do teu beijo, d'aquele abraço apertado; do toque de tuas mãos, eu... Eu percebi o quanto ter isso é vital para mim. Eu simplesmente preciso de ti."

A pastora não disse nada. Apenas tirou os óculos e revelou seus olhos: Estavam rasos d'água...

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... e continua ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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