PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 2
Tereza acordou cedo n'aquele domingo e foi fazer o café. As meninas ainda dormiam e Afonso já havia saído com os amigos de pedal. Saltava aos olhos o quanto havia remoçado seguindo aquele curioso grupo de homens de meia idade em roupas colantes e coloridas montados em suas bicicletas caras. Perdera peso e se adoptara hábitos saudáveis. Era outro homem: mais bem disposto e mais atencioso até. Enquanto ela passava a manhã na igreja com as meninas, ele e seus amigos cumpririam algum percurso quilométrico orgulhosamente postado nas redes sociais. Ela iria almoçar com as meninas n'algum shopping e assistiriam o filme infantil que estivesse em cartaz, além de se comprarem roupas novas. Mais tarde se encontrariam em casa para juntos seguirem para a igreja e participarem do culto mais concorrido, à noite. Há meses eles se revezavam com outros casais na condução dos cultos de domingo -- aqueles voltados para a cura e libertação de casais -- e n'aquela noite o testemunho seria de Afonso. Ela e as meninas se arrumaram com ainda mais cuidado, usando roupas compradas n'aquela mesma tarde no shopping para a ocasião especial. Tudo tinha de ser perfeito.
Afonso tomou o microfone e fez um longo elogio à Tereza. Salientou a mãe dedicada e a mulher companheira que ela era, destacando o papel d'ela na cura do casamento d'eles. Ele admitia que jamais fora religioso, embora tivesse muito respeito por todos que buscavam a Deus de coração sincero. Todavia, reconheceu que com o passar dos anos ele, sobretudo, se sentia infeliz. Não era culpa de Tereza ou mesmo sua, era apenas o desgaste dos anos e a falta de um ideal maior para a própria vida. N'esse momento ele parou, tomou as mãos de Tereza e, beijando-as, disse olhando para ela -- "Obrigado, querida, por não ter desistido de mim! Obrigado por não ter perdido a fé em nós dois! Obrigado por me mostrar o plano de Deus em nossas vidas!" -- E a assembleia irrompeu em palmas exaltadas enquanto Tereza, com a maquiagem a escorrer pela face, sorria jubilosa com tamanha e dir-se-ia até sincera homenagem de Afonso. Ela tomou o microfone e, agradecendo o carinho de todos, pediu que continuassem orando por sua família tal como ela orava pela as famílias de todos ali.
Tereza foi para a "Sala das Pastoras" -- uma espécie de camarim onde as celebrantes se preparavam antes dos cultos ou dos testemunhos. Precisava se recompor para acompanhar a pastora na celebração do culto. Com efeito, apenas a pastora se encontrava ali quando ela entrou. A pastora estava impecável, como sempre, vestida com um conjunto de tailleur e saia jacquard bem claro. Era uma mulher muito elegante, alta e magra e estava maquiada sobriamente. Tinha quase trinta anos, mas ainda sem filhos e, após a viagem missionária que ela e o marido realizaram, ela voltara para manter a liderança da igreja e enviar recursos para a missão onde o marido lidava com toda sorte de problemas. Pelo volume financeiro e complexidade das questões jurídicas que atravessavam com a internacionalização das actividades pastorais, seu papel era cada vez mais de executiva que líder religiosa.
-- "Tereza!" -- disse a pastora -- "Que bom te ver! Precisava mesmo falar contigo." -- ao que Tereza, ainda emocionada com o testemunho de Afonso e, sobretudo, com o carinho da igreja, atalhou -- "Sim, querida! Só não repara o meu estado: foi demais para mim agora há pouco." -- e a pastora, gracejando, lhe respondeu -- "Pois é, que coisa linda vocês dois!". Tereza assentiu: -- "Afonso foi muito fofo! E a igreja... -- a pastora arregalando os olhos a interrompeu -- "Foi maravilhoso!". Tereza sorriu seu sorriso mais luminoso enquanto as lágrimas teimaram em continuar lhe descendo o rosto. Estava muito emocionada! Acabou abraçando a pastora n'um ímpeto desajeitado para esconder seu rosto e poder chorar à vontade. Aquele contacto inesperado foi desconcertante para a pastora. Um frêmito lhes percorreu o corpo e ela tremeu como se houvesse recebido uma descarga elétrica. Tereza agora chorava copiosamente em seu ombro, totalmente entregue aos transportes de emoção que sentia. A pastora se preocupava em reagir de modo adequado, mas o ardor do contacto físico a deixou paralizada: simplesmente não conseguia mover um músculo! A contragosto, percebe sexual aquela emoção. As pernas lhe faltavam enquanto os bicos dos seios, eriçados, saltavam na camiseta de seda sob tailleur. Enquanto Tereza se demorava em seu pranto, uma verdadeira descarga nervosa tomava conta da pastora. Sozinhas n'aquela sala, a pastora percebia ali uma ocasião de intimidade feminina que há muito esperava ter com Tereza. Sim, somente por ela a pastora percebia-se vulnerável afetivamente. Ela falava com tal entusiasmo de tudo o que se propunha a fazer que, sem que se desse por si, se sentira atraída. Desejava ter Tereza sempre por perto e se falavam diariamente desde que voltara da missão. Já confessara à Tereza, inclusive, o quanto se sentia solitária e pressionada em manter sozinha o trabalho pastoral d'uma instituição que se tornava cada vez mais complexa. Todos dias havia um incêndio para se apagar, dentro e fora do país e ela, a pastora, era a única cuja responsabilidade financeira era plena nos negócios da igreja. Ela, com menos de trinta anos, tinha clareza do que era a solidão do poder. Desconfiava de tudo e de todos, sobretudo dos colaboradores da igreja, percebendo conspirações em cada canto do templo. O próprio marido, com o qual dividira essa carga absurda por anos, lhe advertira quando lhe enviou de volta ao país que não confiasse em ninguém. De facto, movimentos muito suspeitos se iniciaram tão logo se ausentaram. A volta da pastora fora sobretudo uma acção para reforçar a autoridade d'eles sobre a igreja e para manter o fluxo de dinheiro para a missão.
-- "Tereza..." -- repetiu a pastora para que ela a olhasse -- "Tereza, preciso te falar." -- ao que esta, tentando se recompor, a abraçou ainda mais apertado, arrancando um suspiro da pastora... Confusa e abalada, a pastora correspondeu demoradamente ao abraço de Tereza, mas com tanta força como se quisesse fundir seu corpo ao d'ela. Quando finalmente se desvencilharam, a pastora colocou suas mãos nas faces molhadas de Tereza e colou levemente seus lábios aos d'ela. Assustada, Tereza se deixou beijar pela pastora por quase um minuto. Ao que recobrando o domínio de si, afastou-a dizendo -- "Pastora, não podemos!" -- e não conseguiu dizer mais nada.
As duas mulheres se entreolharam em silêncio. Apesar de mais nova que Tereza, a pastora aprendera a ler com clareza as pessoas. Sem que esta dissesse mais nada, percebera que a outra não estava envolvida como ela própria pela situação. Apressou-se em se desculpar -- "Tereza, eu sinto muito por isso. Não vai se repetir..." ao que Tereza a interrompeu sem saber bem o que dizia -- "Pastora, é o inimigo!" -- e emendou uma confusa invectiva contra as tentações... A pastora assentiu pedindo-lhe, por fim: -- "Ora comigo, Tereza, para que possamos nos fortalecer". -- Ambas se deram as mãos e desataram em glossolalias ininteligíveis até que, batendo à porta, sua assistente as interrompeu para que a pastora viesse presidir o culto.
Ao longo do culto de cura e libertação dos casais a pastora permaneceu inabalável, como se nada houvesse acontecido. Quanto a Tereza, reunira-se a Afonso e as meninas ainda muito confusa com a situação. O assédio da pastora despertara n'ela emoções que acreditava adormecidas desde que se convertera. Com efeito, seguindo os conselhos do livro do casal de pastores acerca da sexualidade, parou de se frustrar com o desinteresse de Afonso, entendendo que simplesmente ele não gostava tanto quanto ela... Ademais, observando Afonso com atenção, percebera que não podia acusá-lo de nada concreto: Ele começara a pedalar com homens de meia idade e não saía mais do estúdio para farras noturnas. Se não transavam era porque ele não tinha vontade. Nada indicava que se encontrava com outras mulheres. Afonso parecia mais feliz com vida que tinham agora e, com o tempo, Tereza se acostumara com a falta de sexo entre eles. Profundamente realizada com as actividades na igreja, ela sublimou seus impulsos até aquela noite como algo já disciplinado pela vida de oração. Por outro lado, jamais havia sido beijada por outra mulher. Não estava preparada para aquilo e não soube reagir àquele beijo da pastora e, sinceramente, não sabia dizer ao certo como se sentia. Sua gratidão por ela e pela igreja era imensa, de modo que a proximidade que criaram entre si ao longo d'aqueles meses as tornasse cada vez mais importante uma para a outra. Tereza era uma das poucas pessoas em que a pastora reconhecia uma sinceridade desinteressada. O que todos desconheciam, porém, é que ela, a pastora, buscara o resgate do casamento após ter se apaixonado por uma garota... Nunca tivera por seu marido pastor uma verdadeira intimidade de casal, sempre interpretando a falta de jeito do pastor com sua profunda religiosidade. Afinal, desde a adolescência ambos se preservaram, militando pela virgindade antes do casamento acristão. Quando mais nova, ela realmente não compreendia porque as garotas se submetessem aos enormes riscos da sexualidade -- gravidez, doenças, perda do respeito alheio e, sobretudo, a decepção dos pais -- em nome de prazeres tão efêmeros. Como poucos segundos de gozo podiam justificar o resto d'uma vida de desgraças e solidão como a que percebera nas histórias de tantas desajuizadas? Considerava a falta de controle dos impulsos sexuais quase uma desinteligência que desde o início dos tempos arrastava tantas meninas fracas feito mariposas voejando em roda da lâmpada... Seu marido, o pastor, fora seu único namorado e seu único homem n'uma relação afetiva e religiosa a que se devotara desde os dezesseis anos de idade. Seguindo os seus passos na igreja evangélica, gradura-se em Teologia e Psicologia, encontrando na prática de terapia de casais o discurso que fizera a pregação dos dois juntos tão arrebatadora. Finalmente, uma mensagem evangélica conseguia chegar a pessoas sem a mínima vivência cristã. Alçados à fama pelos livros religiosos de ajuda a casais, tiveram apoio para fundar sua própria denominação neopentecostal e iniciar suas missões mundo afora. Coleccionaram inúmeras conquistas até que a sensualidade se impôs sobre seu corpo como uma espécie de dolência inoportuna acompanhada pela excessiva presença d'uma tradutora que lhe serviu de voz no estrangeiro. A rotina de quartos de hotel e voos para cidades estranhas cobrou seu preço n'uma fragilidade que rapidamente se transformou em paixão. A pastora descobria nos braços d'outra mulher uma emoção profunda que tornava a solitária experiência da missão n'uma aventura de descobertas e companheirismo. Logo, porém, prevaleceu o sentimento de culpa com a infidelidade, bem como a incoerência com a mensagem que pregava. A pastora, diante das dificuldades em manter o impulso da evangelização, propôs ao marido que apenas ela voltasse ao país e organizasse a sede para manter o envio dos recursos. Ninguém além da própria tradutora soubera de seu romance. Seu marido e os demais membros da missão sequer desconfiaram, mas ela preferiu não se arriscar mais. Sem embargo, pela primeira vez, a pastora compreendera o quanto a sexualidade era fascinante, embora perigosa, voejando ela mesma em torno d'uma lâmpada...
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... e continua ...
Ubi caritas est vera
Deus ibi est.