DIARIOS DE OFICINA & PENSÃO -XXIV
Quinta-feira, seis de dezembro
Entrei no mercado ainda morto, apenas uma verdureira arrumava a banca. Do outro lado as serras elétricas trinavam nos açougues. Remedi a grelha pela enésima vez, tinha receio de tê-lo escrito errado. O faxineiro temporário Seu Paulo varria, o titular Seu Pananã goza de uma merecida ferias.
- O sr. veio cedo - comentou apoiado no cabo de vassoura.
Seu Obina briga para dar partida no 'possante' - depois de varias tentativas em vã e o fedor inebriante da gasolina, o motor pega numa explosão para segundos depois morrer engasgado.
- Ei, irmão - sauda-me o carroceiro louro, ex-pescador do alto mar, puxando a mula pelo cabresto e a carroça chapada de cacarecos .
Uma baixinha gostosinha, toda apertadinha séria como uma governanta alemã vai para academia. Um friozinho enjoado, o cêu fechado por nuvens plúmbeas - e uma sequencia de canções do mestre João do Vale - um dueto histórico com Jackson do Pandeiro:
"A ema gemeu
no pé do juremá"
Seu Obina triste senta-se na cadeira. Pelo smartphone mostra-me a foto de um Corsa Classic que pretende trocar pelo velho e cansado 'possante'. Levanta-se bruscamente como um boneco de mola, vai até a beira da calçada e faz o sinal para seu amigo Seu Raimundo parar o carro
A grelha esta pela metade. Uma surpresa agradável, Gilberto Zé Meleiro veio-me trazer os vinte reais da solda de uma mesa de um mês atrás. Nem contava mais com esse dinheiro. Aleluia! Aleluia! assovio a musica de Haendel.
Faz vinte anos que o mestre de Pedreira João do Vale nos deixou e foi cantar lá no cêu. O poeta do povo e suas canções simples contando as coisas de sua terra - Maria Betania "Carcará". O João vive em nossos corações.
Pensão - começo da tarde - o fedor forte de mofo exala da toalha que ainda não enxugou. Estou nas paginas finais de "Coiote" - Enxugo a ultima lata de Glacial, a bicicleta da Sorveteria Nobel conclama os seus clientes com "novos sabores de sorvetes".
Finalizei a leitura de "O Coiote" de Roberto Freire, uma loucura bem escrita. Agora volto a reler os meus bons classicos, muitos deles esperam a continuação.
A noite
Deu-me uma vontade louca de reler "Fome" de Knut Hamsun, mas não encontrei em nenhum site. Li um trecho de "As Raparigas em flor" do mestre Proust.. Paul Theroux visita Shaoshan, a aldeia natal do grande timoneiro Mao Tsé-tung - uma cidade abandonada, ninguém mais a visitava - no auge quando ele era vivo recebia oito mil visitantes por dias.
Um culto festivo lá embaixo dos irmãos da Assembleia de Deus; "Em nome de Jesus, amém a Gloria a Deus" - encerra o pastor conclama os fieis presentes para comparecer ao próximo encontro na casa do irmão Câmara.
Proust como gostaria de ler todos os livros de "Em Busca do tempo Perdido" - tenho apenas dois, são sete volumes. Proust é divino, diferente no trato narrativo. Um pouco de Miller para encerrar mais uma noite