Gontinhães, Primavera de 1922
Subiu a calçada do Sol Posto, mas ao passar junto da propriedade do Teles parou arquejante. Um cansaço imenso invadia-lhe o corpo, toldava-lhe a mente. O coração batia desordenado, as pernas pesavam, o ar entrava-lhe com dificuldade no peito.
Encostou-se ao muro com o semblante fechado, procurando recobrar alento. O corpo alto e ossudo, as costas algo curvadas, a tez branca, pálida demais para quem vivia à beira mar, descreviam um jovem precocemente envelhecido. Os vinte e dois anos representavam já um fardo pesado para quem perdeu o pai ainda bebé de cueiros e a mãe três anos depois, ambos abatidos pela tuberculose.
Quando a mãe enviuvou, cedo lhe deu um padrasto, o Abel, que era como um verdadeiro pai para ele. Foi com ele e a avó Maria Chocalha que ficou a viver quando a mãe se finou, pouco depois.
A mãe que procurava recordar, mas de quem não tinha uma leve recordação para guardar. Apenas a fotografia dos pais no dia do casamento perpetuava a imagem destes seres, tragicamente ceifados pela doença implacável. Pouco depois de enviuvar, também o padrasto tinha casado com a Delfina, que o aceitou, e dele tratou com esmero, lado a lado com as filhas naturais que iam surgindo, a Bela, a Minda, a Quinhas, a Letinha, agora vinha mais um a caminho. A Delfina tinha anunciado há poucos dias que estava novamente de esperanças.
Aos poucos recuperou a respiração, mas um ataque de tosse trouxe-lhe um vómito à boca. Limpou o escarro com o lenço, uma pequena mancha encarnada tingia o pano. Já era a segunda vez que lhe acontecia.
Retomou a marcha, um passo lento, quase de velho, até aos Poços de Vilarinho por entre caminhos bordejados de giestas floridas. Sentou-se à sombra de um velho plátano, vendo à sua frente o casario que se estendia até ao mar. Lá em baixo, a beijar a areia do portinho, esperavam as gamelas da sardinha, prontas para a faina, logo mais à tardinha.
Desceu vagarosamente a Gontinhães, terra onde a Delfina e o Abel tinham uma loja e pensão de hóspedes, que era também a sua casa. As crianças brincavam no Largo do Sol Posto ao lado da pensão. Jogavam à riola, outras saltavam à corda.
- Américo, joga aqui connosco – pediu a Letinha, a mais nova do grupo.
- Sim, sim, Américo joga connosco – fizeram coro as demais.
- Agora não posso, tenho de ir tomar conta da loja e falar à avó Maria. Mais logo jogo convosco e ganho-vos a todas!
Entrou na loja fresca e sombria, sentiu-se melhor, já nem lhe ardia o peito ao respirar. Não encontrou a avó em parte alguma. Uma das criadas informou-o que a tinha visto a descer a rua em direcção à praça.
- Se calhar foi à Igreja – concluiu o Américo.
- Que queres à avó, Américo? – Pergunta a Delfina que descia as escadas, vinda dos quartos e que tinha ouvido parte da conversa.
- Nada Tia Fina, nada. Era só para saber dela.
- Américo, estás tão pálido, andas outra vez a comer pouco. Pareces um pisco! Vem comigo, vou fazer-te uma gemada com vinho fino, a ver se te dá novas cores.
- Mas não me apetece nada…
- Não sejas teimoso, tens que te alimentar. Vamos lá para a cozinha!
No dia seguinte estava a Delfina a servir os almoços para os hóspedes quando entrou na cozinha a Gracinda, uma das lavadeiras da pensão.
- D. Delfina, quando puder chegue ao lavadouro.
- Ó mulher, não vês que estou a servir os almoços… Que raio, não fazeis nada sozinhas. Afinal o que aconteceu?
- É que… bom… é melhor a senhora passar lá.
- Deixas-me em cuidados, mas agora…
- Não há pressa D. Delfina. O que é pode esperar…
- Vá lá D. Delfina, eu acabo de servir. Já faltam poucos – intervêm a Maria Ferrinha, a ajudante de confiança da dona da pensão.
Passaram à copa, subiram os degraus que conduziam ao terreno onde estavam os lavadouros. Dois tanques enormes em cantaria de granito onde eram asseados os lençóis, toalhas e cobertores da pensão, assim como as roupas dos hospedes e dos proprietários.
- Que se passa mulher, parece que te surgiu uma alma danada.
- Olhe para este lenço…
- Tem sangue. De quem é?
- Tem sangue mas é no escarro – esclarece a Gracinda.
- Cruzes, de quem é o lenço?
- Do… do menino Américo…
- Tens a certeza?
- Se tenho, minha senhora! Fui eu que abri a trouxa dele. Olhe o resto da roupa, a camisa, as ceroulas, não enganam. São do menino e aqui está outro lenço também manchado de sangue.
- Deus me valha, onde é que ele está?
O Américo foi procurado imediatamente por toda a casa, acabou por aparecer pouco depois com um cesto de figos que recolhera da figueira grande. “Está tão carregada que os galhos estão dobrados quase até ao chão” contava o Américo, enquanto pousava o cesto sobre a comprida mesa da cozinha.
A Delfina pegou-lhe suavemente por um braço levando-o para a salinha, contigua à cozinha, onde o interrogou sobre o sangue no lenço de bolso.
- Pois foi Tia Fina, já é a segunda vez que me acontece. Depois de tossir sai-me um escarro com sangue misturado.
- Ai filho, tu estás doente. Bem me parecia que a tua cor era esquisita. Já mandei chamar o Dr. Luís, mas está para Afife. Só mais logo é que regressa. Enquanto ele não chega tens de te recolher ao quarto. Pode ser doença que se pegue às crianças…
- Oh não! Às crianças não…
- Por isso, vais para o teu quarto até chegar o Dr. Luís, que eu levo-te lá o comer.
O diagnóstico feito pelo Dr. Luís Ramos Pereira foi peremptório, o mal estava instalado nos pulmões e pouco havia a fazer. Foi dada ordem para queimar as roupas de cama e escaldar e apartar a louça onde o rapaz comia.
No dia seguinte foi para o Amonde, acompanhado da avó Maria Chocalha, instalou-se na casa da sua tia Joaquina, irmã do seu falecido pai. Isolamento, ar do monte e uns remédios aviados na botica eram a única esperança.
- Talvez ainda não esteja muito adiantado. – Dizia com ar de dúvida o médico – Olha que se os ares do Amonde não o curarem, nada mais o cura.
Todas as semanas a Tia Leonarda carregava à cabeça um cesto de mantimentos e o jornal para o Américo ler. A viagem fazia-a a pé, duas léguas para cada lado, nada que assustasse esta mulher, habituada como estava a carregar feixes de lenha e outras mercadorias o dia inteiro. Na volta trazia sempre uma carta que o doente escrevia para a sua mãe de adopção, a Tia Fina como ele carinhosamente lhe chamava.
Uma vez o Abel ainda levou as crianças até ao Amonde, viram ao longe a casa e o Américo, não se aproximaram com receio do contágio.
Nem os ares do monte, nem os cuidados de quantos o rodeavam lhe valeram. Escrevia mais uma carta para a Delfina, grávida de oito meses, quando a pena lhe escorregou dos dedos. Já não terminou a frase “Deus o crie para a boa…”.