estas paredes vazias
guardam no breu memória
as cores de tantos quadros
que um dia arrematados
num leilão foram embora
este sofá remendado
ainda acolhe o cansaço
do homem que aqui havia
e uma tarde pôs-se a achar
que sentia sono e dormiu
para nunca mais acordar
esta virgem em madeira
no oratório esquecida
parou de fazer milagre
parou de escutar promessa
e agora quebra o silêncio
e com a voz suplicante
quer que do peito lhe arranquem
a espada que o faz sangrar
e a deixem partir em paz
pra um antiquário qualquer
esta cama de casal
que foi testemunha ocular
de três ou quatro herdeiros
sobre seu colchão fabricados
está toda dilacerada
pela fome dos cupins
e terá por destino o lixo
quem viu começar tanta vida
bem merecia outro fim
este piano de cauda
está aposentado dos concertos
está livre dos saraus
três teclas foram quebradas
eram do mais puro marfim
não fabricam outras iguais
ainda lhe falta um pedal
e mesmo sem ter conserto
dá seu último recital
sem qualquer toque de dedos
toca triste em silêncio
o prelúdio do nunca mais
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júlio
Júlio Saraiva