"Um poeta sem sentimento de morte não é um grande poeta."
E.M. Cioran
o resto de água esquecido no copo
sugere o tempo vazio
a louça suja esquecida na pia
alimenta o tempo vazio
o cigarro que fumo
enquanto espio da janela
o movimento na rua
sem qualquer interesse
é o retrato fiel do tempo vazio
o tempo vazio vive em mim desde a infância
nunca me separei dele
tudo o que me cerca é tempo vazio
eu mesmo sou vazio
sou pierrô das cavernas
a palavra é o meu rebuço
o tédio o meu confidente
bem-aventurado o tédio
que me emprestou seus olhos para eu enxergar a morte
não como a ladra fria e sorrateira
que à traição um dia me arrancará da vida
roubando-me um bem precioso
(mas quem garante que a vida é um bem precioso?)
morrer deve ser tão simples como mudar de roupa
bem-aventurada a minha morte
porque me transformará na ausência de mim mesmo
mil vezes bem-aventurada a morte
porque ao apagar a luz dos meus olhos
apagará também o meu tempo vazio
e me trará enfim
todas as cores vivas do nada
__________________
júlio
Júlio Saraiva