Era madrugada, quando a ambulância do corpo de bombeiros chega célere ao local. Era mais um “previsível” e grave acidente causado pela mistura fatal, regada a vodca, energético, muitas latas de cerveja, droga e velocidade.
O carro que o pai havia comprado há poucas semanas para o jovem universitário, sequer estava emplacado e, somente a quase centenária árvore “fícus” pode lhe frear a fúria de uma louca velocidade.
No lado de fora, um senhor muito maltratado, aparentando mais idade ter do que deveras certamente tinha, acenava para os fregueses lhes pedindo pão com manteiga e um café, o sonho de consumo naquela manhã de domingo, o que, aliás, poderia ser a manhã de qualquer dia, haja vista serem eles tão iguais.
Então, fui observando a cena de abordagem deste pobre senhor com um dos fregueses da Padaria, que me pareceu um pouco ríspida ao negar-lhe o que pedia: ele não pedia dinheiro para consumo de crack, cachaça ou cola de sapato, queria apenas comer alguma coisa para matar a fome, antes que essa lhe matasse.
Segue-se então um diálogo imaginável que ousei traduzir a partir do contexto, dos gestos e das falas, em estilo teatral.
O pai debruçado sobre a cena trágica, enquanto aguardava a remoção do filho já falecido. O mendigo, testemunha ocular do fato, observava atento e solidário.
- Pai (reflete inconsolável, atormentado por grande sentimento de culpa com a perda do filho):
Eu, que nunca estava,
Presente na hora escrava,
Ausente na hora exata.
- Mendigo (reflete sobre a dupla condição, de sobrevivente e testemunha):
Eu, que nunca ameaçava,
Pedinte na hora imprópria,
Ouvinte na hora madrasta.
- Filho (reflete sobre seu trágico fim, em acidente evitável, ainda reluta aceitar a nova condição em que se encontra, vendo seu corpo físico inerte):
Eu? Mas quem sou eu evitando a esquina?
Quem sou eu que trafego na noite soturna?
Que alguém vem me oferecer no posto uma vodca?
- Pai
Eu, que nunca reclamava,
Silente na hora cravada,
Ausente na hora da bravata.
- Mendigo
Eu? Mas quem sou eu que agora brada?
Quem sou eu que nada mais importa?
Que ninguém me abre a porta?
- Pai
Eu? Mas quem sou eu que agora lamenta?
Quem sou eu que fiquei na inércia?
Que alguém agora venha me cobrar esta conta?
- Filho
Eu? Mas quem sou eu que parte assim agora?
Quem sou eu que me entreguei à farra?
Que alguém me socorra agora?
- Mendigo
Quem sou eu perdido na esquina?
Quem sou eu que caminho na rua deserta?
Que ninguém vem me oferecer uma jaqueta usada?
Afinal na vida tantos são os "eus" que lutam pelo bem-estar do próximo, como “Prometeu” da mitologia grega que lhes oferecia o fogo para se aquecerem.
Mas, na vida moderna, o fogo provém de doses elevadas de adrenalina, dopamina e serotonina obtidas através da busca desenfreada da aventura, regadas a álcool, tabaco e outras drogas. Outros seres na miséria permanecem acorrentados jogados ao relento, presas fáceis também das drogas e do álcool, vítimas de ataques de jovens nas noites sem lei.
Esses idolatram a “Baco”, deus mitológico romano do vinho e das festas, com os excessos, na luxúria rodam embriagados.
Mundo cruel, ao lado do mel da vida, farto e generoso, o fel da morte, ilusório e impiedoso. E todos, são filhos do mesmo Deus, e não me refiro aos “deuses mitológicos” do politeísmo criados pelo homem, me refiro ao Deus único, misericordioso, generoso e justo.
Quem chora por Teus filhos, oh Deus?
Que estão deitados nos papelões na marquise do banco.
Que estão estendidos nas macas, em coma no asfalto.
AjAraujo, o poeta humanista, conto escrito em 2012, retratando uma situação da vida real testemunhada pelo poeta.
Fotografia: Homem e filhotes sem teto, Paris, 2009.